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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Pelé foi o maior embaixador do Brasil e forjou a imagem do país no mundo

Colunista do UOL

29/12/2022 16h08

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No que seriam os primórdios da globalização, do início das transmissões ao vivo e da explosão do Sul como ator político no planeta, Edson Arantes do Nascimento se transformou no maior embaixador do Brasil no mundo.

Pelé ajudaria a forjar parte da identidade do país no exterior, confirmaria a ficção de um país da alegria, da arte e da surpresa, e contribuiria de forma decisiva para a criação de uma imagem de uma nação simpática, sem inimigos.

Ainda que tudo isso fosse uma mera ilusão e não fosse a realidade de um país injusto, racista e autoritário, Pelé encarnou em seus dribles, conquistas e mágica o passaporte de reconhecimento internacional de uma nação que lutava para superar seu complexo de vira-lata. Com Pelé, éramos o melhor do mundo. E o mundo assim nos reconhecia.

Pelé se encontra com o papa João Paulo 2 no Vaticano - Reuters - Reuters
18.mar.1987 -- Pelé se encontra com o papa João Paulo 2 no Vaticano
Imagem: Reuters

Em março de 1971, Robert Vergne escreveria no jornal francês L'Équipe: "Pelé se transformou num marco, talvez a quarta ou quinta pessoa mais famosa do mundo, superado apenas pelo Papa, Nixon, Mao e de Gaulle".

Em seu auge, Pelé era solicitado a estar com chefes de estado, monarcas e alguns dos principais protagonistas da política internacional. Em 1968, foi a rainha Elizabeth quem iria ao estádio durante sua passagem pelo Brasil para conhecer o rei. "Eu já conhecia ele de nome e fiquei muito feliz", disse naquele momento a monarca.

Pelé virou selos em países africanos e caribenhos, além de ganhar suas homenagens no Brasil e pelo mundo.

Consta a lenda que uma viagem dele sua para a África interrompeu uma guerra. Não foi exatamente assim que a história ocorreu. Mas a suspensão das hostilidades contribuiu para a mitologia sobre sua influência e poder.

Controverso no que se refere à luta contra o preconceito e o racismo, Pelé ainda assim foi aplaudido no exterior como parte de um movimento maior por reconhecimento. Em 1969, a revista Jeune Afrique, Mahjoub Faouzi destacou que sua carreira era um símbolo para aqueles que sofreram pela cor de sua pele, comparando o papel do jogador ao de Malcolm X, Muhammed Ali e Miriam Makeba.

Um ano depois, a revista Africasia publicaria um poema do senegalês Madike Wade. Pelé, tous les nègres te saluent. (Pelé, todos os negros te saúdam). Era o símbolo das massas contra o imperialismo.

Mas poucos foram os astros internacionais que também puderam dizer que estiveram em duas ocasiões no Salão Oval. Pelé foi um deles.

De fato, sua transferência para o Cosmos, de Nova York, chegou a ser um assuntos de estado e que mobilizaria até mesmo a chefia da diplomacia americana. Em junho de 1975, um telegrama foi enviado ao então chanceler brasileiro Antonio Azeredo da Silveira que, em plena ditadura, tinha a missão de tentar dar uma imagem de normalidade para um regime de exceção.

Naquele telegrama, Henry Kissinger, secretário de Estado norte-americano, pediu que o regime militar brasileiro convencesse Pelé a aceitar a ideia de jogar nos EUA. Entre os diversos fatores que tal transferência geraria uma era considerada como estratégica: a aproximação entre os dois países.

Anos depois, o próprio brasileiro admitiria que a transferência teve uma dimensão diplomática. "Minha permanência em Nova York não foi apenas uma questão de futebol", disse. "Foi Kissinger quem me convenceu a promover o futebol nos EUA", explicou. Naquele momento, o americano afirmou que a ida de Pelé ao futebol americano "contribuiu substancialmente" para a aproximação entre Brasil e EUA.

Pelé, porém, teria de conviver com a crítica de que foi usado pelo regime militar brasileiro e que, com seu nome sendo mais conhecido que a marca da Coca Cola, poderia ter sido fundamental para pressionar a ditadura a abandonar seus crimes.

Já na democracia, a decisão de Fernando Henrique Cardoso de colocar Pelé como ministro dos Esportes jamais teve uma função de organizar o esporte no país. Segundo fontes do Itamaraty, Pelé era incluído nas missões internacionais de FHC, num momento em que o Brasil tentava provar que era um ator confiável, estável e legítimo.

Conscientes do poder do jogador, dos mais de 300 jogos dos Santos pelo mundo, marcas brasileiras fecharam contratos milionários para que seus produtos chegassem ao exterior pela imagem de Pelé.

Para experientes embaixadores, uma política externa pode atingir certos objetivos a partir do diálogo e negociações. Mas a existência de Pelé como um verdadeiro ativo do softpower brasileiro abriu portas, criou atalhos e fez líderes estrangeiros sorrirem como crianças diante da fascinação que ele desempenhou.

Em um momento de desembarque do Brasil no cenário internacional, Pelé ajudou a forjar quem somos no mundo.