Um admirador de Bolsonaro, fraude e caos: o colapso de Moçambique
Moçambique vive um terremoto político e social que ameaça colocar em questão a própria estrutura de um Estado já fragilizado, inclusive por abalos climáticos. Nos últimos dias, a violência num dos países mais pobres do mundo já fez mais de cem mortos e abriu um debate sobre a validade das eleições realizadas em outubro.
O pleito era um teste para a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), o movimento que liderou a independência do país nos anos 70 e que, deste então, ocupa o governo. Daniel Chapo era o candidato do governo, contra o pastor evangélico Venâncio Mondlane.
Documentos do governo brasileiro vistos com exclusividade pelo UOL apontam que as eleições em Moçambique foram marcadas por "suspeita de fraude". Um relatório da CPLP indicou problemas como "morosidade na apuração" e problemas nos "procedimentos de contagem" dos votos.
Um outro informe, desta vez realizado por observadores da UE, também sinalizou para os problemas identificados. A missão "observou irregularidades durante a contagem de votos e a alteração injustificada dos resultados eleitorais". Os bispos católicos de Moçambique também denunciaram manipulação de votos.
O Brasil chegou a ser convidado para enviar observadores. Mas, por conta da eleição municipal que ocorria praticamente nas mesmas semanas, o TSE optou por não retirar nenhum de seus funcionários do país. No primeiro semestre, assessores do presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegaram a considerar uma parada em Maputo, durante uma viagem para a África.
Moçambique, um país de língua portuguesa, é considerado como uma peça importante na presença do Itamaraty no continente africano. A dificuldade, porém, decorria do calendário eleitoral no país africano.
Com eleições marcadas para o segundo semestre, Maputo vivia já um momento de indefinição política. Na prática, se Lula optasse por fazer uma parada em Maputo, se reuniria apenas com um presidente que estava de partida. A escolha do Palácio do Planalto foi por viajar para Angola.
Opositor é admirador de Bolsonaro e Trump
No dia 9 de outubro, um dia antes do anúncio oficial dos resultados, o candidato da oposição, Venâncio Mondlane declarou sua vitória e ameaçou com o "caos" se o Conselho Constitucional desse a vitória ao candidato partido no poder, Daniel Chapo.
Mondlane, um pastor evangélico que faz suas lives nas redes sociais a partir do exterior para fugir da Justiça, afirma ser um admirador do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Em uma recente coluna, o escritor José Eduardo Agualusa explicou que "Mondlane tem sido apoiado por igrejas evangélicas brasileiras". "Num vídeo disponível na internet não só agradece a uma destas igrejas, como presta homenagem a Jair Bolsonaro", escreveu.
Mondlane chamou o ex-presidente brasileiro de "homem de Deus" e "esperança do Brasil". Ele também comemorou a vitória de Donald Trump por "proteger os valores morais da América".
De acordo com os documentos do governo brasileiro, a crise aumentou quando, em 19 de outubro, dois representantes do partido Podemos, aliado da oposição, foram mortos a tiros.
As autoridades, logo depois, anunciaram a vitória do candidato do governo com 70,7% dos votos. Mondlane teria ficado com apenas 20,3%. O partido Podemos disse que deveria ter 138 dos 250 assentos no parlamento, em vez dos 31 que a comissão eleitoral disse ter conquistado.
Mondlane afirmou repetidamente que venceu e pediu que seus partidários saíssem às ruas. Isso levou a economia a uma quase paralisação, incluindo o fechamento da fronteira e a interrupção do comércio com a África do Sul.
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JAMIL CHADE
Todo sábado, Jamil escreve sobre temas sociais para uma personalidade com base em sua carreira de correspondente.
Quero receberO UOL conversou com três diferentes entidades e, apesar do alerta sobre a existência de uma possível fraude, nenhuma delas garante que Mondlane tenha obtido votos suficientes para vencer. A situação, portanto, é de uma completa incerteza e falta de transparência.
Segundo o governo brasileiro, outro marco na crise foi o anúncio do Ministro do Interior de que haveria "tolerância zero" diante dos protestos.
Se o questionamento de resultado de eleições é comum no país, a diferença desta vez foi a articulação dos protestos, ganhando o apoio da classe media e baixa urbana. O governo, segundo os documentos apurados pelo UOL, reagiu com violência e revelando estrutura precária das forças de ordem.
Depois de rejeitar os recursos da oposição, as autoridades confirmaram a derrota de Mondlane no dia 23 de dezembro, ampliando ainda mais a crise.
Como forma de justificar a repressão, o governo se apressou em denunciar a tentativa de Mondlane de instrumentalizar o caos e chantagear o país.
Pastor difusor de violência
As acusações de diplomatas estrangeiros são, de fato, de que o pastor teria ampliado a crise social com discurso de ódio. Nos últimos dois dias, foram suas convocações que ampliaram o movimento de saques de lojas e estabelecimentos comerciais em Maputo e em outras cidades.
Messiânico, ele chegou a anunciar ainda no começo de dezembro que não haveria Natal neste ano no país. "Vamos perder as festas, não vamos a praia, não vamos visitar a família, para organizarmos esse país. Este ano, os dirigentes vão ter de ficar com o povo, porque se eles saírem, nós vamos ocupar", alertou.
Quem reconhece?
Até agora, apenas 15 governos pelo mundo reconhecem os resultados divulgados pelos moçambicanos, entre eles Cuba, China, Rússia, Angola, Nicarágua e Venezuela.
Em seus informes, o governo brasileiro aponta para a existência de 236 atos de violência no pais e mais de cem mortos. O documento também diz que várias embaixadas estrangeiras já prepararam planos para a retirada de seus nacionais.
800 missionários brasileiros em Moçambique
No caso do Brasil, o Itamaraty recomendou aos brasileiros que permaneçam em suas casas e que estoquem comida. São cerca de 3 mil brasileiros hoje vivendo em Moçambique, dos quais 800 são missionários.
Por enquanto, tanto o governo brasileiro como a ONU pedem que as diferentes forças políticas no país busquem o diálogo. Mas não reconhecem nem a vitória do representante do governo e nem da oposição.
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