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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Bolsonaro atacou a democracia brasileira, conclui relatório da ONU

Conselho de Direitos Humanos da ONU - Xinhua/Xu Jinquan
Conselho de Direitos Humanos da ONU Imagem: Xinhua/Xu Jinquan

Colunista do UOL

28/06/2023 12h36

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Jair Bolsonaro contestou eleições sem apresentar provas, sinalizou apoio ao regime militar no Brasil entre 1964 e 1985, reduziu o espaço da sociedade civil e atacou as instituições democráticas.

Essas são algumas das conclusões de um informe preparado pelo relator da ONU, Clément Nyaletsossi Voule, e que está sendo apresentado aos governos de todo o mundo nesta quarta-feira, no Conselho de Direitos Humanos da ONU. No documento, o ex-presidente é acusado de atacar a democracia brasileira, pela primeira vez de forma explícita.

A sessão ocorre às vésperas da conclusão do julgamento no TSE sobre a possível inelegibilidade de Bolsonaro.

Voule ocupa o cargo de relator especial da ONU sobre direitos à reunião pacífica e liberdade de associação. O documento não implica qualquer tipo de sanção internacional contra Bolsonaro. Mas amplia a pressão internacional e o constrangimento sobre o ex-presidente. O documento ainda pode servir para embasar decisões ou argumentos do Judiciário, no próprio país.

Voule esteve no Brasil no primeiro semestre de 2022 e realizou visitas a diferentes cidades. Nesta quarta-feira, ao relatar sua viagem ao Brasil para os demais membros do Conselho de Direitos Humanos, o especialista destacou os ataques contra a sociedade civil brasileira.

"Estou profundamente preocupado com o alto nível de violência contra defensores dos direitos humanos, mulheres, comunidades LGBTQI+, quilombolas, povos e líderes afro-brasileiros e indígenas", disse. "Exortei o governo a garantir que esses grupos possam exercer com segurança seus direitos à liberdade de reunião e associação pacíficas, sem medo de perseguição ou qualquer tipo de discriminação", afirmou.

Para reduzir a violência policial, o relator recomenda o governo brasileiro a desenvolver um protocolo unificado para os agentes de segurança, com o objetivo de facilitar a realização de protestos pacíficos, em conformidade com as normas internacionais.

"Além disso, é fundamental que as novas autoridades restabeleçam a confiança da sociedade civil através da criação de um ambiente propício e favorável. Devem garantir o acesso adequado à justiça e a responsabilização pelos abusos sofridos pelos ativistas e manifestantes, como no caso de Maria Franco. As autoridades brasileiras devem também garantir que as leis antiterrorismo e a nova lei de segurança nacional estejam em conformidade com as normas e padrões internacionais de direitos humanos", defendeu.

Voule aplaudiu as medidas tomadas pelo governo Lula "para reforçar a democracia, nomeadamente abrindo espaço para o diálogo, como o reinício das actividades dos Conselhos Nacionais e garantindo uma participação social mais ampla".

Em seu informe, ele acusa Bolsonaro dos seguintes atos:

  • Desmontar a estrutura de participação social na definição de políticas públicas.
  • Atacar as instituições democráticas e questionaram a eleição.
  • Promover a influência militar em órgãos do Estado e nomeou oficiais militares para vários cargos no Governo, incluindo cargos de alto nível, como o Chefe de Gabinete do Presidente e o Ministro da Saúde.
  • Expressar ambivalência em relação aos valores democráticos fundamentais, defendendo abertamente o regime militar autoritário que vigorou entre 1964 e 1985 e atacando as instituições democráticas.
  • Negar a existência de uma ditadura militar no Brasil de 1964 a 1985, fez avaliações positivas dos eventos que ocorreram durante a ditadura, que incluíram graves violações de direitos humanos, banalizou tais violações e glorificou pessoas condenadas por terem participado da prática de crimes contra a humanidade ou que estavam sendo investigadas por tais crimes.
  • Minimizar a pandemia, criticando o distanciamento social e outras medidas de proteção e atacando especialistas médicos e instituições científicas.

O relatório ainda expressou preocupação especial com o fato de que, antes das eleições, a campanha de Bolsonaro envolveu "ataques contínuos contra instituições democráticas, o judiciário e o sistema eleitoral no Brasil, incluindo o sistema eleitoral eletrônico".

"Em reuniões com o Relator Especial, especialistas também identificaram ligações entre campanhas de desinformação generalizadas que atacam os sistemas eleitorais e a coalizão partidária e os apoiadores de Bolsonaro", disse. Para ele, as eleições constituem um evento significativo na vida de uma nação que oferece uma oportunidade única para fortalecer os princípios e valores democráticos e para que a sociedade civil se envolva com os princípios e valores democráticos.

"Os esforços das autoridades governamentais para minar o processo eleitoral transparente, desencorajar a participação política e rejeitar resultados eleitorais desfavoráveis são inaceitáveis em um sistema democrático", denunciou.

Um aspecto ainda que preocupou o relator foi o fato de que o aumento da política iliberal corresponda à diminuição do apoio à democracia entre os brasileiros. No informe, ele cita estudos que mostraram que o apoio a um regime autoritário em algumas circunstâncias atingiu 41% em 2018 no Brasil, em comparação com 19% em 2013. "Reverter essa tendência negativa deve ser uma prioridade do Estado", completou.

Ao tomar a palavra, a delegação brasileira fez questão de marcar que existe uma ruptura em relação ao que ocorreu nos anos Bolsonaro. O Itamaraty indicou que o novo governo está "trabalhando em iniciativas que reforçam o nosso tradicional compromisso com os direitos humanos e com a implementação das nossas obrigações internacionais em matéria de direitos humanos".

"Estamos cientes de que muitas das questões destacadas no relatório são estruturais e continuam sendo grandes desafios", disse o embaixador brasileiro na ONU, Tovas da Silva Nunes.

"No entanto, o contexto político atual no Brasil difere substancialmente daquele verificado em 2022, durante a visita do Relator Especial ao país. Passamos agora por um processo de profunda reconstrução de nossas políticas de direitos humanos. Nesse exercício, realizado por um governo com grande representação dos movimentos sociais populares, reconhecemos e damos especial atenção à situação de vulnerabilidade de pessoas historicamente discriminadas, incluindo afrodescendentes, mulheres, indígenas, quilombolas, moradores de rua e pessoas LGBTQIA+", disse o embaixador.

De acordo com o Itamaraty, há um reconhecimento de que "o processo de fortalecimento da democracia brasileira, no qual nos encontramos profundamente engajados, passa necessariamente pela proteção do direito à liberdade de reunião e associação pacíficas".

"Para tanto, devemos assegurar a participação substancial e o engajamento da sociedade civil nos processos decisórios, garantindo um ambiente seguro e livre de assédio para o seu trabalho, e promovendo o pleno e livre exercício da atividade política, especialmente para as populações marginalizadas", defendeu Tovar Nunes da Silva.

Ele assegurou que haverá uma reconstrução dos conselhos de participação social. "Consideramos um importante atributo dos processos democráticos", disse. O diplomata garantiu que, em resposta a uma das recomendações da Relatora Especial, o governo brasileiro revogou integralmente o Decreto 9.759/2019, que havia extinguido a maioria dos conselhos da sociedade civil.

"Isso é um sinal do nosso compromisso de fortalecer a participação popular em todos os níveis e de restabelecer os espaços de diálogo entre a sociedade civil e as autoridades governamentais", disse.

"Com o mesmo espírito, vários novos decretos foram editados este ano, revigorando os conselhos existentes e criando outras instâncias permanentes de participação da sociedade civil. Além de reestruturarmos formalmente esses espaços, também criamos as condições necessárias para o seu funcionamento, inclusive com a aprovação de novos recursos orçamentários para o funcionamento desses conselhos", disse.

A médio prazo, o governo prevê ainda a convocação de novas conferências nacionais para discutir políticas públicas com a sociedade civil, com ênfase nas políticas para crianças e adolescentes e pessoas com deficiência, bem como o relançamento da Cúpula Social do Mercosul no 2º semestre deste ano.

O governo ainda destacou a criação de um grupo de trabalho sobre o combate ao discurso de ódio e ao extremismo, com a missão de propor políticas públicas em matéria de direitos humanos. Essa era uma das recomendações da ONU.

"Essa é uma das ações do governo para evitar que atentados à democracia como os do dia 8 de janeiro voltem a acontecer. O grupo envolve acadêmicos e profissionais de diversas áreas que se dedicam a pensar na criação de uma cultura de paz, respeito e preservação da dignidade humana, com respeito à liberdade de expressão e reunião pacífica", disse o diplomata brasileiro.

"A promoção e a proteção dos direitos à liberdade de reunião e associação pacíficas desempenham um papel fundamental em uma democracia vibrante", completou.

Relatório denuncia golpistas de 8 de janeiro de 2023

O relator destaca que, depois de sua visita, o questionamento da eleição de outubro de 2022 foi um ponto marcante desse ataque contra a democracia.

"Embora as eleições tenham sido reconhecidas pela comunidade internacional e pelos observadores eleitorais como livres, justas e transparentes, elas foram marcadas por desinformação e violência política", disse.

"Bolsonaro contestou os resultados sem fornecer provas substanciais e continuou seus ataques ao sistema eleitoral e às instituições", apontou.

"Em 8 de janeiro de 2023, seus apoiadores invadiram e vandalizaram os prédios do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal, pedindo uma intervenção militar para destituir o presidente democraticamente eleito, Lula da Silva", alertou.

O relator especial "condenou esse ataque contra as instituições democráticas e as tentativas de minar o voto democrático do povo brasileiro e pediu aos apoiadores que deixassem os prédios que haviam invadido".

Ele ainda destacou como, nas palavras do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, os ataques às instituições governamentais foram "o ponto culminante da distorção contínua dos fatos e do incitamento à violência e ao ódio por parte de atores políticos, sociais e econômicos que alimentaram uma atmosfera de desconfiança, divisão e destruição ao rejeitar os resultados das eleições democráticas".

Segundo ele, a transição do Brasil do regime ditatorial para a democracia foi formalizada pela Constituição de 1988, que garante o direito à liberdade de expressão, associação e reunião. As garantias constitucionais, no entanto, foram afetadas negativamente nos últimos anos como resultado da proliferação de leis e decretos adotados pelas autoridades brasileiras em uma tentativa de minar esses direitos. Tais leis e decretos enfraqueceram a democracia do país e a participação da sociedade civil e das comunidades marginalizadas nos assuntos públicos.

?Na época da visita do relator especial, o documento aponta que a democracia no Brasil "vinha experimentando há anos um nível significativo de retrocesso". "O retrocesso em relação aos valores e compromissos democráticos, que já vinha ocorrendo há anos, foi marcado por um aumento dos valores iliberais, da violência política e dos ataques às instituições democráticas", disse.

Segundo ele, as eleições de outubro de 2022 "aumentaram essa crise democrática". "Nesse contexto, o Relator Especial observou com preocupação o aumento dos incidentes de discurso de ódio e violência política", destacou.


Papel dos militares e simpatia às ditaduras

Um dos destaques do informe é ainda o envolvimento militar no governo civil de Bolsonaro. "Durante sua presidência, ele (presidente) promoveu a influência militar em órgãos do Estado e nomeou oficiais militares para vários cargos no Governo, incluindo cargos de alto nível, como o Chefe de Gabinete do Presidente e o Ministro da Saúde", destacou o informe.

O documento cita como, em 2021, o Tribunal de Contas da União informou que havia 6.157 militares da ativa e da reserva em cargos civis no Governo. Isso era o dobro da participação militar em comparação com o Governo anterior, que tinha 2.765 militares em cargos civis.
Mas era a linha de Bolsonaro que mais chamou a atenção.

"O governo de Bolsonaro expressou ambivalência em relação aos valores democráticos fundamentais, defendendo abertamente o regime militar autoritário que vigorou entre 1964 e 1985 e atacando as instituições democráticas", disse.

"Durante seu governo, Bolsonaro e membros de seu governo frequentemente negaram a existência de uma ditadura militar no Brasil de 1964 a 1985, fizeram avaliações positivas dos eventos que ocorreram durante a ditadura, que incluíram graves violações de direitos humanos, banalizaram tais violações e glorificaram pessoas condenadas por terem participado da prática de crimes contra a humanidade ou que estavam sendo investigadas por tais crimes", afirmou.

O texto é contundente: "Não se tratava de comentários isolados, mas sim de parte de uma narrativa contínua que buscava minar os esforços importantes para lembrar a história das violações de direitos humanos do passado e reconhecer as vítimas e suas famílias".

O informe ainda destinou uma parcela importante de sua análise para alertar sobre a adoção de políticas que restringem a participação social e política e limitam os espaços de consulta relativos às políticas públicas e à tomada de decisões no país.

"Desde 2019, pelo menos 650 conselhos, comitês e outros mecanismos participativos foram dissolvidos por decreto presidencial, enquanto os restantes, como o Conselho Nacional de Direitos Humanos, estão enfrentando sérios obstáculos ao seu funcionamento, incluindo questões orçamentárias e administrativas que impedem a realização de suas reuniões", disse.

"O desmantelamento dessa estrutura de participação cívica tem sido prejudicial à democracia brasileira, ao Estado de Direito, à inclusão social e ao desenvolvimento econômico", denunciou.

Para ele, o decreto presidencial prejudica ainda mais os princípios da governança democrática, como abertura, transparência e prestação de contas, reduz a independência e a autonomia da sociedade civil e ameaça a promoção e a proteção dos direitos humanos, inclusive o direito de participar da condução dos assuntos públicos e o direito de acessar informações.

Terminado o governo Bolsonaro, o relator "está confiante de que o Brasil tem a capacidade, a vontade política e a maturidade para restaurar a confiança e a esperança entre aqueles que sofreram com a marginalização e anos de violações de direitos humanos, inclusive como resultado do exercício de suas liberdades fundamentais".

Para ele, a vibrante sociedade civil do país tem um papel importante a desempenhar na salvaguarda da democracia e da coesão do Brasil.

"Como visto nos últimos anos, a sociedade civil tem resistido ao discurso populista que mina a legitimidade de seu trabalho e também tem resistido ao aumento de medidas legais e leis que visam restringir o espaço cívico e a participação em assuntos públicos", disse.

Em sua avaliação, é importante que as novas autoridades "reconstruam a confiança na sociedade civil por meio da criação de um ambiente propício que permita seu trabalho".

"Reconhecer a sociedade civil e reverter a narrativa negativa, no mais alto nível do Estado, sobre o trabalho da sociedade civil e sua contribuição essencial para o desenvolvimento do país será fundamental para a criação desse ambiente favorável", insistiu.

Segundo ele, a superação dos desafios da discriminação, das profundas desigualdades e da proteção da terra e das comunidades amazônicas, indígenas e marginalizadas exigirá a participação livre e significativa da sociedade civil.