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Leonardo Sakamoto

Decisão do STF contra discurso de ódio é remédio que pode matar o paciente

Alexandre de Moraes - Foto: divulgação
Alexandre de Moraes Imagem: Foto: divulgação

Colunista do UOL

31/07/2020 16h18Atualizada em 01/08/2020 12h49

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Uma das tragédias de vivermos em uma sociedade ultrapolarizada é que cada debate público é visto como mais uma batalha de uma grande guerra do bem contra o mal. Nesse eterno conflito, toda ação que crie problemas ao adversário do meu grupo ideológico é encarada como algo positivo e festejada - mesmo que estejamos chocando um ovo de serpente que, mais cedo ou mais tarde, vai morder quem não tinha nada a ver com a história.

Vamos aos fatos: o Facebook se negou a atender a uma determinação do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, nesta sexta, para bloquear os perfis registrados no exterior dos mesmos aliados de Jair Bolsonaro que já haviam sido suspensos da plataforma no país por determinação do próprio Moraes no dia 24.

Diante da intimação do presidente da empresa no Brasil e da possibilidade de sua responsabilização criminal pelo descumprimento da decisão, o Facebook voltou atrás e bloqueou essas pessoas em todo o mundo, segundo nota divulgada na manhã deste sábado (1).

Após o bloqueio inicial pelas redes sociais, parte da tropa bolsonarista conseguiu abrir novas contas, ancorando-as no exterior. No Twitter, conseguiram operar, alterando as configurações de localização. Pelo menos até a ordem de bloqueio mundial por parte do STF, que a empresa acatou.

O caso Facebook havia cumprido a ordem bloqueando a visualização das páginas e perfis a partir de endereços IP do Brasil. Os bloqueados criaram novas contas usando VPN (Rede Privada Virtual, em inglês), camuflando a origem, para tentar burlar a trava. Mesmo assim, isso reduziu fortemente o acesso ao conteúdo dessas novas contas aqui no país uma vez que os internautas eram impedidos de acordo com sua localização.

O cumprimento do bloqueio do Facebook sobre a primeira decisão de Moraes, portanto, já era abrangente o suficiente do ponto de vista do resultado. Mesmo assim, a empresa negou, inicialmente, a demanda de suspensão global para evitar a abertura de um precedente. De acordo com seu porta-voz, "a mais recente ordem judicial é extrema, representando riscos à liberdade de expressão fora da jurisdição brasileira e em conflito com leis e jurisdições ao redor do mundo". E, claro, ações judiciais desse tipo, se adotadas com frequência, podem tornar o negócio das plataformas um caos.

Por exemplo, permitir que um juiz na Venezuela mande bloquear um perfil no Brasil baseado no descumprimento de uma lei venezuelana. Ou um juiz brasileiro ordenar a suspensão de um perfil na França em cumprimento a uma lei brasileira. Tanto Twitter quanto Facebook vão recorrer ao pleno do Supremo Tribunal Federal.

Mas, do ponto de vista do cidadão, a decisão de Moraes faz mais do que isso, esgarçando determinadas liberdades individuais e invertendo o devido processo legal.

O abuso da liberdade de expressão deve ser alvo de responsabilização judicial posterior. Essa discussão não é entre direita e esquerda, mas entre civilização e barbárie. E, antes que seja tarde demais, deve ser tratada como tal pela política, pela sociedade.

Como já escrevi aqui em coluna anterior, há poucas pessoas que seriam mais interessadas em ver contas de expoentes do naco violento da extrema-direita serem derrubadas do que eu pelas agressões físicas, cusparadas e ameaças de morte que sofri em decorrência de fake news.

Mas a decisão do ministro Alexandre de Moraes, da forma como veio, abre um precedente ruim.

O ministro tinha ilegalidades de sobra para justificar uma ação contundente contra alguns desses indivíduos pelo que fizeram. Deveria ter tomado sua decisão explicitando tais condutas, de forma clara. Cada incitação ao ódio, uma punição.

Ele não poderia afirmar que o bloqueio de contas é "necessário para a interrupção dos discursos com conteúdo de ódio, subversão da ordem e incentivo à quebra da normalidade institucional e democrática". Pois punições existem a posterior, não a priori. Não podemos estabelecer uma sociedade em que as pessoas são punidas antes de cometerem os crimes.

Parece que o STF tenta, dessa forma, compensar a incompetência do Estado em investigar com celeridade e fazer cumprir a lei contra quem incitou violência e ódio via redes sociais e aplicativos de mensagens.

Isso não significa, em nenhum momento, que estou defendendo que quem espalha desinformação e ódio deve sair impune. Apenas que o controle por parte do Estado seja feito da maneira correta, garantindo que as pessoas respondam pelo que disseram ou fizeram, com o rigor da lei, não pelo vão dizer e vão fazer.

Muitos dos que defendem a decisão de Alexandre de Moraes dizem que quem a critica está fazendo o jogo do naco violento da extrema-direita e quer que ela continue contando mentiras. O debate ultrapolarizado faz com que enxerguem apenas duas opções: as ações dos meus inimigos (que são ruins) e as ações contra eles (que, por oposição, são boas). Quando, na verdade, são um remédio tão amargo que pode matar o paciente.

Pois pode chegar o dia, no futuro, em que outros ministros, indicados por governantes autoritários, resolvam usar o mesmo expediente para calar jornalistas, ativistas pelos direitos humanos ou qualquer um que discorde da narrativa do poder.

A crítica às decisões do STF é pertinente porque ela será seguido por magistrados de todo o país, alguns dos quais com vontade de usar politicamente suas togas - da mesma forma que o comportamento e declarações violentas do presidente da República são copiadas pelo "guarda da esquina".

Os demais ministros do STF, por sentirem na pele os ataques de ódio, dificilmente vão reverter as decisões de Moraes. Além disso, querem mostrar unidade. O problema é que uma Constituição se mantém viva quando há coragem para a tomada de decisões difíceis, mesmo à revelia dos interesses pessoais.