Bolsonaro culpa STF por sua própria omissão e reforça mentira como método
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"É uma mentira essa história de que a Amazônia arde em fogo", afirmou o presidente da República nesta terça (11). Não importam fotos e vídeos da floresta queimando, imagens de satélites com milhares pontos de calor comendo a região e relatos do inferno colhidos de indígenas, ribeirinhos e moradores de cidades. Bolsonaro aposta que a construção da realidade não brota de fatos, mas de sua narrativa. E, em sua narrativa, o salvo-conduto que ele entregou a madeireiros, garimpeiros, grileiros e pecuaristas ilegais não se traduz em salto nos índices de desmatamento e em queimadas.
Afirma gostar da passagem bíblica do "Conhecereis a verdade e ela vos libertará" (Evangelho de João 8:32), mas parece, de fato, se identificar com "Eu sou o caminho, a verdade e a vida" (João, de novo, 14:6).
Com a mesma desenvoltura que afirma isso, propaga aos quatro ventos que o Supremo Tribunal Federal cravou que prefeitos e governadores eram os responsáveis pelas políticas de combate ao coronavírus e que isso o impediu de agir. O que o STF disse é que Estados e municípios também deveriam participar da elaboração da política contra a pandemia. Ou seja, lembrou que somos uma federação que deve ser gerida com base no diálogo entre União, Estados e municípios.
O problema é que, com isso, Jair não conseguiria implementar plenamente o seu Combo Caos Premium (distribuir hidroxicloroquina + trancar apenas idosos e imunodeprimidos + o resto na rua para se contaminar o mais rápido possível). Assim, ele usa a decisão para esconder o fato que foi ele mesmo ter que tirou o corpo fora, evitando articular e liderar um grande plano nacional de combate à doença. É um caso raro de intrépido capitão que corre para o lado oposto do campo de batalha.
Desde então, vem jogando a culpa em prefeitos e governadores, chegando ao cinismo de divulgar listas de Estados e municípios responsáveis pelo maior número de mortos, esquecendo convenientemente de colocar a si mesmo, presidente do país, acima de todos.
Há colegas jornalistas com pudor de dizer abertamente "o presidente mente" achando que isso extrapola o papel da imprensa. Mas quando a mentira é usada como instrumento de governo, da mesma forma que foi empregada como ferramenta de sua campanha eleitoral e como base de seus mandatos parlamentares, não afirmar isso com todas as letras é um desserviço.
Contadas à exaustão, as mentiras tornam-se farol e norte para milhões de fãs e seguidores. Ele não precisa que o Brasil inteiro acredite nelas, apenas que sejam repetidas por uma parcela de ingênuos e outra de pessoas de caráter duvidoso, criando uma parcela ruidosa de apoiadores. Simultaneamente, o pagamento do auxílio emergencial vai mantendo os índices de popularidade em alta entre os mais pobres, como esta coluna vem repisando desde o início da pandemia. E a compra de deputados e senadores garante a proteção anti-impeachment no Congresso Nacional. E, assim, vai construindo a reeleição.
Todo governante mente. A questão é quando isso se torna parte estrutural de uma gestão, estando presente em discursos, entrevistas, reuniões, para refutar quaisquer fatos e dados comprovados que estejam na contramão dos desejos do presidente. Quando a mentira é muito descarada e é pega no pulo, Bolsonaro adota a tática Donald Trump, afirmando que nunca disse o que efetivamente disse e chamando a imprensa de "fake news". Como muitos de seus seguidores não se dão ao trabalho de checar em fontes confiáveis, a culpa passa a ser dos "jornalistas que querem derrubar o presidente".
Mas, durante a pandemia, ele vem sustentando sua maior mentira - a história da "gripezinha" - com força. Toda sua narrativa ainda gira em torno disso. A letalidade do vírus? Invenção do Jornal Nacional. Quarentena? Coisa de brasileiros covardes. Mortes em massa? Mentira, são caixões enterrados com pedras e hospitais de campanha mantidos vazios para enganar as pessoas.
Ao vender "fatos alternativos", neste momento, Bolsonaro semeia mortes e desemprego. É isso o que a desinformação que ele espalhou até aqui sobre o coronavírus pavimentou: morte de quem acreditou no presidente que poderia ir para a rua viver sua vida normal e desemprego prolongado, com o adiamento da retomada da economia ao manter viva a pandemia. Afinal, o que afastam os negócios não são quarentenas, mas pessoas morrendo.
Claro que as mentiras não vêm de hoje e rol é extenso e não caberia em um só texto. Falando em Amazônia, ele já culpou indígenas, ONGs e até o ator Leonardo DiCaprio pelas queimadas. Disse que tinha a "convicção" de que os dados de desmatamento (que saltaram no ano passado e neste ano) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais eram mentirosos e acusou o então presidente do órgão, o cientista Ricardo Galvão, de estar "a serviço de alguma ONG". Ignorando a realidade, cravou que não existe fome no Brasil. Chamou o vazamento de óleo que atingiu as praias do Nordeste e do Sudeste de criminoso, chegando a dizer que poderia ser uma ação para prejudicar o leilão da cessão onerosa do Pré-sal - mas até hoje seu governo não descobriu o que de fato aconteceu.
Bradou que a metodologia de cálculo de desemprego do IBGE, que segue padrões internacionais, é errada simplesmente porque ela não o ajudava. Disse que a tortura pela qual a jornalista Miriam Leitão sofreu era mentira, que o jornalista Glenn Greenwald se casou e adotou crianças para evitar ser deportado, que a jornalista Constança Rezende conspirava contra seu filho. Afirmou que trabalho escravo é um exagero e que fiscais libertam pessoas pela pouca espessura de colchões ou pela falta de copos decentes. Após visitar o Memorial do Holocausto, em Israel, disse que o nazismo foi um movimento de esquerda - para espanto de judeus e alemães. Revelou saber o paradeiro do corpo de Fernando Santa Cruz, que morreu lutando contra a ditadura, apenas para espezinhar seu filho, Felipe, presidente da OAB. Aliás, repetiu exaustivamente que não houve ditadura no Brasil.
Críticos à política do presidente acreditaram que as mentiras sobre a pandemia, de tão cabeludas, tropeçariam na montanha de cadáveres. O que aconteceu foi outra coisa: a montanha de 100 mil chegou e o que vimos foi que os brasileiros se acostumaram relativamente à tragédia. E, ouvindo-as diariamente, rotinizaram as mentiras.
A ponto de entregarem seu futuro para uma delas: que nossa democracia é sólida e vai suportar tudo isso.