Mito do "Bolsonaro Paz e Amor" vem da fé na domesticação do autoritarismo
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Bolsonaro nunca esteve moderado, nem fez silêncio. Ele apenas havia suspendido temporariamente o seu hobby de agredir jornalistas, magistrados e políticos de oposição em público após a Justiça decidir que Fabrício Queiroz deveria passar uma temporada em Bangu. Mas continuou atacando a democracia, a saúde pública e o futuro do país de outras formas.
Queiroz, aquele que, junto com a esposa, depositou R$ 89 mil na conta da primeira-dama, Michele Bolsonaro, por uma razão que o presidente se nega a responder. Queiroz, aquele acusado de ser o operador de desvios de recursos públicos do gabinete de Flávio Bolsonaro. Queiroz, aquele casado com Márcia de Aguiar, que também é um arquivo-vivo que pode contar muita coisa sobre os imóveis, os chocolates, as milícias e as rachadinhas dos Bolsonaro.
Violência não é apenas dizer para um repórter "minha vontade é encher tua boca com uma porrada", mas tentar enfiar goela abaixo da população um remédio que não traz cura, mas graves efeitos colaterais. Ou ajudar a promover o desastre humano e ambiental em curso na Amazônia. Ou sugerir o corte de orçamento de saúde e pesquisa científica no momento em que vivemos uma pandemia assassina.
A diferença é como percebemos as violências. Quem está protegido do impacto das mentiras contadas pelo presidente porque depende pouco do Estado ou era vítima de suas agressões diárias, tende a achar que ele havia se acalmado.
Por outro lado, acreditar na ideia de "Jairzinho Paz e Amor" foi muito mais desejo de uma parcela da sociedade cansada dos ataques do presidente contra as instituições e as leis, e de uma camada da elite econômica que acreditava na possibilidade de, enfim, tutelá-lo, do que algo baseado na realidade.
Em uma live, na noite do dia 16 de julho, por exemplo, ele já havia desmentido aqueles que defendiam que ele havia submergido ao disparar um fuzil automático de mentiras sobre a covid. Exaltado, dizia que "o desemprego mata mais que o próprio vírus", a cloroquina era a única alternativa, o Supremo Tribunal Federal disse que ele não decidia nada sobre a pandemia.
Já no dia 11 de agosto, Bolsonaro afirmou que "é uma mentira essa história de que a Amazônia arde em fogo". Não importam fotos e vídeos da floresta queimando, imagens de satélites com milhares pontos de calor comendo a região, relatos do inferno colhidos de indígenas, ribeirinhos e moradores de cidades, trabalhadores escravizados libertados em atividade de desmatamento ilegal. Não só isso, ele teve a pachorra de dizer que "floresta úmida não pega fogo".
Em sua narrativa, o salvo-conduto que entregou a madeireiros, garimpeiros, grileiros e pecuaristas ilegais não se traduz em salto nos índices de desmatamento e em queimadas. Pelo contrário, a culpa, segundo ele, são das vítimas. Disse também em 16 de julho: "uma parte considerável das pessoas que desmatam e tocam fogo é indígena, caboclo".
Contadas à exaustão, as mentiras de Bolsonaro no período "paz e amor" tornaram-se farol e norte para milhões de fãs e seguidores. Ele não precisa que o Brasil inteiro acredite nelas, apenas que sejam repetidas por uma parcela de ingênuos e outra de pessoas de caráter duvidoso.
Simultaneamente, o pagamento do auxílio emergencial foi aumentando os índices de popularidade entre os mais pobres, como esta coluna vem repisando que aconteceria desde o início da pandemia. E a compra de deputados e senadores garante a proteção anti-impeachment no Congresso Nacional. Assim, vai construindo a reeleição.
Durante o tal período de "silêncio", o governo Bolsonaro organizou um orçamento prevendo 13% a menos de recursos para a educação e 5% a menos para a saúde, em relação ao que foi proposto no ano passado. E um corte de 15% a 18% para pesquisa, isso em meio a uma pandemia assassina global. O projeto foi especialmente carinhoso com as Forças Armadas, tentando protegê-las o máximo possível.
Dizer que Jair havia mudado e queria uma relação pacificada com outros poderes era fé demais na conversão do presidente ao comportamento republicano.
Não é porque o presidente não estava mais afagando AI-5ers em atos antidemocráticos aos domingos que tudo estava bem. Não estava. A República e a democracia continuam sendo comidas por dentro, inclusive pelas negociações e os "deixa-disso" institucionais para mantê-lo no cargo.
O silêncio do presidente foi barulhento. E deixou cicatrizes que vamos levar muito tempo para curar.