Argentina amplia direito ao aborto enquanto Brasil ameaça menina estuprada
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A Argentina aprovou o direito das mulheres de optarem por um aborto até a 14ª semana de gestação, independentemente do motivo. O Senado disse sim para a proposta por 38 votos a 29, na madrugada desta quarta (30), acompanhando a Câmara dos Deputados - que já havia dado o seu aval no dia 11.
Enquanto isso, no Brasil, uma criança de dez anos de idade, estuprada desde os seis pelo próprio tio, foi ameaçada de morte por desejar interromper uma gravidez não apenas absurda, mas que também colocava em risco sua saúde. Pior: o governo federal tentou convencer a família a evitar o aborto, previsto em lei.
Contrários ao avanço aprovado por nosso vizinho dizem que ele vai levar a um aumento no número de abortos. Não, na verdade levará a uma redução no número de mulheres que morrem ou ficam com sequelas devido a abortos clandestinos. Ou que são presas, processadas ou humilhadas por conta disso.
Relatório da Human Rights Watch aponta que, anualmente, até 522 mil abortos são realizados por lá. Dados oficiais mostram que 39 mil são hospitalizadas em decorrência de complicações de interrupção da gravidez, como apontou o jornal El País. Por lá, o direito ao aborto já era previsto para casos de estupro e risco de morte à gestante.
Defender o direito ao aborto não é defender que toda gestação deva ser interrompida. E sim que as mulheres tenham a garantia de atendimento de qualidade e sem preconceito por parte do Estado se fizerem essa opção.
A luta passa pelo justa demanda das mulheres a terem autonomia sobre o próprio corpo - que é recebido por frases superficiais de fundamentalistas como "e o direito do embrião, como fica?" ou "e o feto teve escolha?". Mas também há uma questão pragmática, de saúde pública: abortos vão acontecer diante do desespero de uma menina ou de uma mulher. Quer nós homens, políticos, religiosos, cidadãos comuns, concordemos ou não.
Ou seja, para além do debate religioso, legal e filosófico, essa é uma questão de redução de danos.
Garantir que o Estado reconheça o direito ao aborto seguro evita milhares de mortes por procedimentos clandestinos ou realizados de forma precária. A Argentina percebeu isso. O Brasil, onde o tema está sendo discutido no Supremo Tribunal Federal, ainda não.
Aliás, se homens tivessem útero, pecado seria questionar esse direito.
Enquanto a questão não é resolvida, o aborto segue "livre" para quem conta com recursos financeiros para ter acesso a clínicas seguras, enquanto a maioria da população acaba sofrendo as consequências da clandestinidade.
Mesmo nos casos autorizados por lei, brasileiras que recorrem à interrupção da gravidez enfrentam os mais diversos tipos de violência. Há médicos que recusam atende-las em processo de abortamento espontâneo. Servidores públicos chamam a polícia alegando que elas cometeram crime. Isso sem falar do calvário de ter que viajar muitos quilômetros para encontrar um serviço público que possa acolhê-las, pois há médicos e hospitais que se negam.
Enquanto isso, as bancadas do fundamentalismo religioso no Congresso Nacional, em Assembleias Estaduais e Distrital e nas Câmaras Municipais têm atuado em nome de projetos que são retrocessos à dignidade. Como aquele que que buscava criminalizar a orientação sobre o aborto legal, com penas maiores se quem ajudar for agente de saúde. Ou as campanhas para reduzir a previsão de aborto legal, permitido no Brasil em três situações: estupro, risco de vida para a mãe e anencefalia.
A pesquisadora e professora do curso de Gênero e Diversidade, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Maíra Kubik Mano, lembra que essa mudança na Argentina só foi possível graças à combinação de uma intensa mobilização de longo prazo das mulheres, da eleição de um governo progressista e de um parlamento com mais de 40% de mulheres - o que coloca o país em 19º entre 191 em um levantamento das Nações Unidas.
Apesar de serem maioria na população no Brasil, mulheres representam 14,5% do Congresso Nacional, o que nos coloca na vergonhosa posição 140º. Isso é causa e é consequência, ao mesmo tempo.
Em agosto, a Vara da Infância e da Juventude autorizou que a menina estuprada durante anos pelo tio, em São Mateus, Espírito Santo, pudesse interromper a gravidez. Mesmo assim, políticos e religiosos pressionaram para que ela levasse a gestação até o fim. Foram à porta do hospital para ameaçar a criança e os médicos que realizaram o procedimento.
A proporção que toma um caso como o dela, muito por conta de políticos que acham que o corpo de meninas e mulheres é um campo de batalha para a sua cruzada particular, é a prova que estamos ainda mais próximos de uma distopia apocalíptica do que de uma sociedade de direitos.
Como já disse aqui, líderes políticos, magistrados, religiosos fundamentalistas, comunicadores, humoristas dizem que não incitam a violência contra outros. Não são suas mãos que seguram a arma, mas é a sobreposição de seus argumentos ao longo do tempo que distorce a visão de mundo das pessoas comuns e torna o ato de atacar banal.
Suas ações e regras redefinem, lentamente, o que é moralmente aceitável, visão que depois será consumida e praticada por terceiros. Estes acreditarão estarem fazendo o certo, quase em uma missão civilizatória. Ou divina. Por esses e outros motivos, se Cristo vivesse hoje, seria morto novamente em nome de Deus.
A Argentina pode viver uma tragédia econômica. Mas, em termos de civilização, continua dando um banho no Brasil.