Após Argentina, governo Bolsonaro avalia 'batalha' contra direito ao aborto
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Após a aprovação do direito ao aborto até a 14ª semana de gestação na Argentina, nesta quarta (30), a ala mais conservadora do governo Bolsonaro passou a discutir formas de impedir que o mesmo aconteça no Brasil, reforçando o tema como bandeira de gestão e até como pauta eleitoral. Contudo, não há perspectiva de mudança na legislação para legalizar ou descriminalizar o aborto no Congresso Nacional.
Esse grupo avalia que uma longa articulação e mobilização de militantes do movimento feminista levou à mudança na legislação e que o mesmo pode acontecer por aqui. Com base nisso, passou a levantar caminhos a serem trilhados pelo Poder Executivo e os apoiadores do governo para essa "batalha", na palavra de um de seus membros.
Entre as ações, está avançar com projetos tramitando no Congresso Nacional que buscam aumentar a pena para quem aborta ou que tentam dificultar a interrupção da gravidez mesmo nos casos já previstos em lei. Uma das prioridades é a aprovação de legislação que estenda para o óvulo fecundado os mesmos direitos das crianças e adolescentes.
Hoje, ela é, em tese, garantida em casos de estupro, risco de morte da gestante e anencefalia. Na prática, mesmo nessas situações, o procedimento em hospital público é, não raro, barrado pela Justiça ou por profissionais de saúde que se negam a realiza-lo.
Em agosto deste ano, uma menina de dez anos, de São Mateus (ES), cuja gravidez foi fruto do estupro do próprio tio, teve que realizar o aborto em outro estado, sob ameaças de militantes e pressão de representantes do governo.
Intensificar a articulação internacional contra o direito ao aborto
Outra ação discutida é intensificar articulações internacionais envolvendo governos de ideologia ultraconservadora para fortalecer a posição contrária ao direito ao aborto.
Um diplomata lembrou à coluna que a pauta já é uma das principais, ao lado da pedofilia, nos eventos e fóruns de extrema direita do qual tem participado a atual administração brasileira. E que o Brasil tem empunhado essa bandeira em diferentes instâncias das Nações Unidas.
O próprio chanceler Ernesto Araújo deu mostras disso ao tuitar, nesta quarta, que "o Brasil permanecerá na vanguarda do direito à vida e na defesa dos indefesos, não importa quantos países legalizem a barbárie do aborto indiscriminado, disfarçado de 'saúde reprodutiva' ou 'direitos sociais' ou como quer que seja".
Incidência política junto ao Poder Judiciário para garantir decisões contrárias à interrupção da gravidez também é uma ação prioritária. A maior aposta dos favoráveis a mudanças é o Supremo Tribunal Federal, que está há dois anos com uma ação que pede o fim da punição a abortos realizados até a 12ª semana de gestação. O tema não tem previsão para voltar a ser analisado pelo plenário.
Mas a questão não se resume ao STF. Não raro, juízes têm negado, por questão ideológica, o direito ao aborto mesmo para gestantes que, por lei, teriam o direito ao procedimento em um hospital público. Setores do governo quer fortalecer esses magistrados e esse posicionamento.
Outra ação discutida, segundo uma fonte no parlamento, é criar formas para proibir que mulheres brasileiras cruzem a fronteira com a Argentina para realizar aborto com segurança sem serem punidas. Não se sabe, porém, como o país vizinho vai regulamentar a questão do acesso ao procedimento por estrangeiras.
No Uruguai, onde o aborto também foi legalizado, é necessário que a mulher resida a, pelo menos, um ano no país. Já na Colômbia, a Suprema Corte permitiu o aborto em casos de risco à saúde física e mental da mulher, o que ampliou significativamente os casos permitidos. Estrangeiras, inclusive brasileiras, têm recorrido a clínicas particulares na Colômbia. O Brasil não pode punir por atos cometidos fora do território que também não sejam crimes no país em questão.
Mas, a menos que more próximo à fronteira, o custo do deslocamento não é baixo. E clínicas particulares brasileiras já realizam abortos clandestinos com segurança para famílias de classe média alta e classe alta. A questão, como sempre, é para as mulheres pobres.
Incluir o tema entre as prioridades da campanha de Bolsonaro à reeleição
Por fim, outra das ações discutidas é transformar o tema em um dos pilares da campanha pela reeleição de Jair Bolsonaro (sem partido) em 2022. Se depender do presidente, a estratégia - que vai ao encontro daquela que adotou em 2018 - será bem-recebida.
Também nesta quarta, ele postou em sua conta no Twitter: "Lamento profundamente pelas vidas das crianças Argentinas, agora sujeitas a serem ceifadas no ventre de suas mães com anuência do Estado. No que depender de mim e do meu governo, o aborto jamais será aprovado em nosso solo. Lutaremos sempre para proteger a vida dos inocentes!".
Não seria a primeira vez que o tema do aborto ganha protagonismo eleitoral. Isso acabou ocorrendo em 2010, no confronto entre Dilma Rousseff (PT) e José Serra (PSDB).
Apesar da longa mobilização de mulheres brasileiras pela ampliação ao direito ao aborto, o Congresso Nacional dá sinais de que "não deve mexer nesse vespeiro", por enquanto, afirmou à coluna um parlamentar da base do governo. Não, pelo menos, para facilitar o direito ao aborto.
A pesquisadora e professora do curso de Gênero e Diversidade, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Maíra Kubik Mano, lembra que a mudança na Argentina só foi possível graças à combinação de uma intensa mobilização de longo prazo das mulheres, da eleição de um governo progressista e de um parlamento com mais de 40% de mulheres - o que coloca o país em 19º entre 191 em um levantamento das Nações Unidas.
Apesar de serem maioria na população no Brasil, mulheres representam 14,5% do Congresso Nacional, o que nos coloca na posição 140º.
Segundo pesquisa Datafolha, de janeiro de 2019, 41% da população acredita que o aborto deva ser totalmente proibido.