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Leonardo Sakamoto

Após ser cúmplice de 200 mil mortes, Bolsonaro diz que não é genocida

Pilar Olivares/Reuters
Imagem: Pilar Olivares/Reuters

Colunista do UOL

07/01/2021 18h41

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O Brasil ultrapassou, nesta quinta (7), a marca dos 200 mil óbitos por covid-19. Números oficiais, claro, porque estimativas da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) apontam que o total real pode já ter ultrapassado os 260 mil.

Enquanto alguma família perdia um ente querido para essa doença estúpida, Jair Bolsonaro ameaçava mais uma vez a democracia, afirmando que se as urnas eletrônicas não produzirem comprovantes impressos em 2022, "vamos ter problemas piores do que os Estados Unidos". Ele se referia à invasão do Congresso norte-americano, nesta quarta, em uma tentativa de golpe fomentada por Donald Trump.

Isso é representativo do que tem sido o Brasil durante a pandemia: pessoas morrendo e Bolsonaro pensando apenas em como se manter no poder.

Os 200 mil representam 1.005 acidentes com aviões da TAM, como aquele de julho de 2007, ou 740 rompimentos de barragens da Vale em Brumadinho (MG), em janeiro de 2019, tragédias pelas quais choramos por meses. Ou uma bomba matando todos os habitantes de cidades do porte de Araçatuba (SP), Lauro de Freitas (BA), Castanhal (PA) ou Passo Fundo (RS).

Quase um ano após a chegada do vírus, estamos banalizando os óbitos. O que pode vir a ser a pior herança do bolsonarismo: um Brasil que se importa menos com a vida.

Bolsonaro não trabalhou para imunizar rapidamente a população contra a covid-19. Pelo contrário, ele tem sido um incansável guerreiro contra as vacinas, atacando sua credibilidade. "A vacina, se é emergencial, ela não tem segurança ainda. Ninguém pode obrigar ninguém a tomar algo se não tem certeza das consequências", disse hoje, alimentando desconfiança sem apresentar sem provas.

Com base no DataMessias, seu chutômetro particular, disse que menos metade da população brasileira pretende tomar vacina. "Alguém sabe quantos por cento da população vai tomar vacina? Pelo que eu sei, menos da metade da população, pelo que eu sei. E esta pesquisa que eu faço, faço na praia, faço na rua, faço em tudo quanto é lugar", disse. O Datafolha, de novembro, aponta que 73% querem se vacinar.

Mas, dessa forma, excita seus seguidores radicais e reduz a demanda pelo produto. A estratégia tem dado certo: já são 22% aqueles que não querem o imunizante.

"Querem me tachar de genocida. Quem que eu matei?"

Ironicamente, o presidente tentou se vacinar de críticas que surgirão por conta dos 200 mil mortos. "Querem me tachar de genocida. Quem que eu matei?", questionou a seus apoiadores hoje.

"Muito pelo contrário. Eu, com as minhas medidas, sugeri tratamento precoce. Evitamos muitas mortes", disse. Mentira. Sobre tratamento precoce, ele se refere à distribuição de um remédio para malária e lúpus e um vermífugo, que não tem eficácia comprovada para covid-19 segundo publicações revisadas por cientistas.

E, infelizmente, não estamos no final da pandemia. Desde novembro, as curvas de contágio, de internações e de falecimentos voltaram a crescer. E com as aglomerações nas festas de Natal e Ano Novo, é esperada uma explosão de casos e mortes a partir de metade deste mês.

Aglomerações que foram, largamente, apoiadas pelo presidente.

Alguns países tiveram a sorte de ter um líder, não foi o nosso caso

A crise já seria grave com um governo federal que seguisse a ciência, fosse guiado pela razão e passasse por cima de interesses políticos individuais para articular uma resposta nacional à pandemia.

Enquanto alguns países foram conduzidos em meio à tormenta por pessoas do porte de Jacinda Ardern, primeira-ministra da Nova Zelândia, transparente e republicana, que protegeu vidas e a economia, o Brasil foi guiado noite adentro por Jair Messias Bolsonaro. Não é uma questão de sorte ou azar, porque cada país tem o político que elege.

O presidente não apenas negou a gravidade da doença, mas também negou a responsabilidade por ela. E, por conta disso, apesar de contar com um dos melhores sistemas mundiais de vacinação, o Brasil vai largar atrasado no processo de imunização.

"Ninguém me pressiona pra nada, eu não dou bola pra isso", disse ele, no dia 26 de dezembro, após ser questionado por jornalistas se havia pressão pelo fato de outros países, inclusive nossos vizinhos, já terem começado a vacinar sua população.

"Eu sou Messias, mas não faço milagre"

A declaração, como destaquei aqui, é irmã do "E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre", proferida por ele, em 28 de abril, quando questionado sobre o fato de o Brasil ter superado a China em número de mortos por covid.

Ao lutar contra as políticas de isolamento social adotadas por governadores e prefeitos visando ao combate do coronavírus, Bolsonaro fez com que as quarentenas durassem mais. O que elevou o número de mortos e atrasou a retomada do emprego.

Propôs um auxílio emergencial de apenas R$ 200, que subiu graças à pressão do Congresso Nacional. Surfou na popularidade do benefício, que acabou em dezembro. Poderia ter organizado um plano para geração de empregos decentes, considerando o que viria depois. Preferiu deixar a sociedade por conta própria, como se a fome pudesse esperar. Cada um por si e Deus acima de todos.

O presidente deveria ter gasto todas as suas energias para cuidar da população. Mas a prioridade presidencial foi proteger sua reeleição e seus filhos de processos judiciais. Como a denúncia apresentada contra o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) por desvio de recursos públicos, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Isso consumiu tempo, atenção e manobras políticas.

"Quem que eu matei?", perguntou.

Ele sabe que comandantes não precisam executar pessoalmente. Na maior guerra da história do Brasil, ele traiu seus compatriotas e se aliou ao inimigo, o coronavírus - que fez o serviço sujo.

"Querem me tachar de genocida", reclamou.

Se um político chega ao ponto de precisar afirmar publicamente que não é genocida é porque o país que ele governa merece a piedade do resto do mundo.