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Leonardo Sakamoto

Embaixador nos EUA tem reunião com ONGs chamadas de 'câncer' por Bolsonaro

Flávio Bolsonaro cumprimenta o diplomata Nestor Forster, indicado para o cargo de embaixador do Brasil nos Estados Unidos - DIDA SAMPAIO/ESTADÃO CONTEÚDO
Flávio Bolsonaro cumprimenta o diplomata Nestor Forster, indicado para o cargo de embaixador do Brasil nos Estados Unidos Imagem: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO CONTEÚDO

Colunista do UOL

26/01/2021 11h47

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Resumo da notícia

  • Embaixador brasileiro em Washington DC, o conservador e olavista Nestor Forster teve reunião considerada amistosa com ONGs ambientalistas.
  • Reunião tratou de desmatamento e de mudanças climáticas, e ocorreu um dia antes da posse de Joe Biden - que criticou Bolsonaro na campanha.
  • "Não consigo matar esse câncer em grande parte chamado ONG que tem na Amazônia", afirmou Jair Bolsonaro em live em setembro do ano passado.

O embaixador brasileiro nos Estados Unidos teve uma reunião amistosa com diretores de ONGs ambientalistas para "colher sugestões e discutir oportunidades para a relação entre Brasil e Estados Unidos na área de meio ambiente", de acordo com telegrama interno do Itamaraty ao qual a coluna teve acesso. Isso seria algo cotidiano se o embaixador não fosse Nestor Forster, diplomata conservador e entusiasta da pauta bolsonarista, amigo pessoal do extremista Olavo de Carvalho - responsável, aliás, por apresentá-lo ao chanceler Ernesto Araújo.

Forster está em um cargo-chave de um governo que tem acusado organizações não-governamentais de estarem por trás de uma conspiração contra ele e sido criticado por negacionismo frente às mudanças climáticas.

"Vocês sabem que as ONGs, em grande parte, não têm vez comigo, né? A gente bota para quebrar em cima desse pessoal lá. Não consigo matar esse câncer em grande parte chamado ONG que tem na Amazônia", afirmou Jair Bolsonaro (sem partido), em live nas redes sociais, no dia 3 de setembro do ano passado.

Em agosto de 2019, o presidente afirmou que as críticas de organizações não-governamentais são causadas por corte de financiamento público. E jogou a culpa pelas queimadas na sociedade civil. "Pode estar havendo, não estou afirmando, ação criminosa desses 'ongueiros' para exatamente chamar a atenção contra a minha pessoa, contra o governo do Brasil", afirmou.

Conforme o telegrama de 22 de janeiro, Nestor Forster deu um tom diferente ao que o governo estava acostumado. "Ao encerrar o encontro, ressaltei a importância do diálogo permanente com as organizações ambientais, muitas das quais mantêm representações importantes projetos de preservação ambiental no Brasil, em prol do intercâmbio de informações e aprofundamento da cooperação bilateral na área de desenvolvimento sustentável, proteção ambiental e mudança climática", escreveu.

De acordo com relatos colhidos pela coluna junto às organizações, o embaixador foi amigável, procurando manifestar uma posição de abertura para o diálogo com a sociedade civil em temas como Amazônia e clima, buscando oportunidades para aproximação entre o Brasil e os EUA nesses temas. Não reconheceu os problemas e fez propaganda das ações do atual governo, como era de se esperar.

Organizações não-governamentais estrangeiras e brasileiras vêm apontando um desmonte na politica de proteção ambiental por parte de Bolsonaro e criticado seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais mostram que o desmatamento e as queimadas na Amazônia deram um salto desde o início do atual governo.

O próprio embaixador, quando ainda era encarregado de negócios da embaixada, chamou de "histeria injustificada" a reação internacional sobre as queimadas na Amazônia durante uma entrevista à NPR, a rádio pública dos EUA, em agosto de 2019. "Se as queimadas estão dentro da média dos últimos 15 anos, por que toda a gritaria agora?"

Estratégia diplomática em meio a mudanças externas e problemas internos

"Ao invés de 'double down' na loucura, que teria sido uma estratégia até verossímil para a diplomacia do atual governo, preferiram a de entregar os anéis para não perderem os dedos", afirmou uma fonte diplomática à coluna em condição de anonimato.

Para ela e outras no Itamaraty ouvidos pelo UOL, isso se soma aos "tuítes bonzinhos" do chanceler Ernesto Araújo destinados à China, que foram postados em meio à necessidade de destravar o envio de insumos para a vacina contra o coronavírus. Isso representa uma mudança de comportamento após meses de ataques, alguns dos quais considerados racistas, e críticas ao gigante asiático por parte de membros do governo e familiares do presidente da República.

E se soma, principalmente, ao que diplomatas chamam de "carta boazinha" enviada ao presidente Joe Biden por Bolsonaro.

Para alguns, está acontecendo uma espécie de blitz concertada do grupo do chanceler para passar alguma normalidade e garantir o emprego contra as pressões por demissão.

Para outros, isso é conjuntural, uma vez que o governo está sob pressão interna causada tanto pela inoperância durante a pandemia quanto pelo desemprego e externa por causa da saída da derrota de Donald Trump e a chegada ao poder de Biden, crítica a Bolsonaro. Para estes, esse "jogo de cena" oportunista se esfarela na eleição de 2022.

ONGs defenderam justiça social para indígenas e quilombolas

Participaram da reunião, segundo o comunicado interno do Itamaraty, representantes da Amazon Biodiversity Center, Earth Innovation Institute, WWF, World Resources Institute (WRI), Global Environment Facility, Nature Conservancy, Tropical Forest Alliance, Environmental Defense Fund, Conservation International e Forest and Farm Facility, ligado à da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO).

Os participantes sublinharam que "uma das preocupações centrais nos EUA em relação às políticas ambientais brasileiras consiste no tratamento das comunidades indígenas e quilombolas, à luz do objetivo, por parte da administração Biden, de conciliar a recuperação econômica pós-covid-19 com a sustentabilidade ambiental e justiça social".

Também ressaltaram a necessidade de regularização fundiária na Amazônia, a oportunidade representada pelo aumento na transparência na cadeia produtiva de mercadorias brasileiras, a conveniência do setor agrícola brasileiro se preparar para oferecer commodities com emissão zero de gases de efeito estufa e a importância de mais programas de reflorestamento e do combate ao desmatamento ilegal.

Embaixada conversou sobre mudanças climáticas com organizações

Um dos pontos da reunião foi a necessidade do Brasil se engajar junto à nova administração dos Estados Unidos nos esforços contra as mudanças climáticas. Por exemplo, com o impulsionamento de novo consenso para redução de emissões originadas de desmatamento.

Joe Biden tratou do tema em um debate presidencial, deixando claro que faria pressão sobre o governo brasileiro - o que foi posteriormente rechaçado por Bolsonaro.

Apresentou-se a sugestão do Brasil aceitar propostas apresentadas na Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2019 (COP-25), em Madri, para fazer cumprir o Acordo de Paris. Bolsonaro ameaçou seguir Donald Trump e deixar o acordo, mas acabou refugando. Uma das primeiras ações de Biden como presidente foi devolver os EUA a ele.

"Avalio que a reunião foi particularmente útil em função do grau de representatividade e credibilidade dos interlocutores presentes, inclusive no que tange suas conexões com a nova administração norte-americana", afirmou Forster no telegrama. "Além disso, sinalizou com clareza a abertura brasileira para maior cooperação bilateral na agenda ambiental e permitiu que se colhessem impressões e sugestões concretas para avanços no diálogo entre Brasil e EUA sobre meio ambiente."

Antes desse documento, segundo uma fonte na diplomacia, era raro a menção ao clima em telegramas vindos do embaixador. Nesse documento, a palavra "clima" é mencionada duas vezes e "climática" outras cinco.