Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Para tristeza das Forças Armadas, há abundância de coronéis citados na CPI
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É uma Quadrilha. Tal qual o poema de Carlos Drummond de Andrade, a Pfizer desejava o governo Bolsonaro que, por sua vez, desejava uma vacina imaginária oferecida pela Davati Medical Supply, que prometia intermediar 400 milhões de doses da AstraZeneca. Detalhe: ela não tinha o imunizante. Entre desejos não realizados e pedidos de propina, quem ficou na mão foi o povo brasileiro, que morreu aos milhares no vácuo da vacina.
O laboratório Pfizer procurou insistentemente o Ministério da Saúde para vender seu produto. Segundo o vice-presidente da CPI da Covid, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), foram mais de 100 tentativas, incluindo uma oferta de 70 milhões de doses, em agosto passado, com início de entrega para dezembro. Mas o governo ignorou e só fechou contrato neste ano, atraso que custou muitos familiares, amigos e colegas de trabalho de todos nós.
Contudo, Cristiano Carvalho, representante da Davati, uma obscura empresa norte-americana, afirmou em depoimento à comissão, nesta quinta (15), ter sido procurado insistentemente pelo então diretor da área de Logística do Ministério da Saúde, Roberto Ferreira Dias. Isso teria acontecido antes do jantar, em 25 de fevereiro, no qual, segundo o cabo da PM Luiz Dominguetti, Dias pediu um dólar de propina por dose para levar a negociação com a Davati adiante.
"Como vocês vão verificar nas mensagens e nas informações, eu nunca entrei em contato com o Ministério da Saúde. O Ministério da Saúde é que me procurou através do senhor Roberto Ferreira Dias", afirmou Cristiano Carvalho. Por que correr atrás de 400 milhões de doses tão reais quanto o Coelho da Páscoa através de uma empresa com cheiro de cambalacho se o governo já tratava diretamente com a AstraZeneca, via Fiocruz? Essa pergunta vale bilhões de reais.
O ex-diretor de Logística, que foi exonerado do cargo após as denúncias de pedido de cascalho ganharem a imprensa, e teria relação com o deputado federal e líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), nega. Ele recebeu voz de prisão do presidente da CPI, Omaz Aziz (PSD-AM) por mentir à comissão em seu depoimento.
Que o governo Jair Bolsonaro sabotou a compra de vacinas, isso já foi amplamente demonstrado pela comissão. A questão é se a intenção disso foi ideológica (o presidente e seus assistentes negligenciaram a aquisição do produto porque estavam promovendo a contaminação em massa visando a uma irreal imunidade de rebanho) ou busca por dinheiro fácil mesmo. Afinal, a CPI vai deixando claro a existência de um esquema para sangrar os cofres públicos no processo de compra das vacinas.
Como nos disse o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), membro da comissão, em entrevista ao UOL, nesta quarta (14), a resposta provavelmente seja um pouco dos dois.
A negociação da Davati, ao final, não foi adiante. Mas, ao contrário do que afirmam insistentemente os senadores governistas, isso pouco importa. Ao tratar de corrupção, o Código Penal fala que basta um servidor público aceitar a promessa de vantagem em razão de sua função, não sendo necessário consumar o pagamento.
Para a tristeza das Forças Armadas, abundam coronéis na CPI
Cristiano Carvalho, em seu depoimento, afirmou que negociou com o então secretário-executivo do Ministério da Saúde, coronel Élcio Franco, e o ex-assessor de Roberto Dias Ferreira, coronel da reserva Marcelo Blanco - que havia aberto uma empresa de representação de insumos hospitalares.
Segundo o representante da Davati, a propina (que ele chamou de "comissionamento") seria destinada ao "grupo" ligado ao coronel Blanco, que ajudou a criar o elo inicial entre a empresa e o governo federal. Grupo que contaria com a presença de Dias.
Uma reunião, no dia 12 de março, com representantes do ministério, foi intermediada, segundo Carvalho, pelo reverendo Amilton de Paula e pelo coronel Helcio Bruno, do Instituto Força Brasil - organização bolsonarista que esteve na mira da CPMI das Fake News e fez campanha contra vacinas. Bruno teria acesso direto a Élcio Franco.
Nessa reunião, estiveram também o coronel da reserva Cleverson Boechat, coordenador-geral de Planejamento do Ministério da Saúde, e o coronel da reserva Marcelo Bento Pires, da coordenação do Plano Nacional de Operacionalização das Vacinas contra a Covid-19.
Cristiano também citou o coronel reformado da Aeronáutica Gláucio Octaviano Guerra, que atua como assessor do adido militar na embaixada brasileira em Washington DC. Ele teria sido o responsável por apresentá-lo a Herman Cardenas, proprietário da Davati nos Estados Unidos.
O fato de serem citados não significa que são culpados de participarem de cambalachos, mas a reincidência de alguns nomes mostra que as Forças Armadas deveriam ter muito cuidado antes de sair em sua defesa incondicional.
O presidente da CPI da Covid, o senador Omar Aziz (PSD-AM), afirmou, no último dia 7, que "membros do lado podre das Forças Armadas estão envolvidos com falcatrua dentro do governo" e que os honestos devem estar muito envergonhados. Isso é óbvio, uma vez que toda categoria profissional, todo grupo social, tem pessoas honestas e desonestas. Negar isso é encarar a si mesmo como detentor de uma natureza divina.
Mas o ministro da Defesa e a cúpula das Forças Armadas subiram nas tamancas e ameaçaram o Senado Federal com uma nota pública. Gastariam melhor o seu tempo depurando suas próprias fileiras. Pois há militares que, com sua ação e inação, foram cúmplices tanto da montanha de 537 mil mortes por covid, como o general Eduardo Pazuello, quanto da corrupção na compra de vacinas. E esse é o novelo que a CPI está apenas começando a desemaranhar.
Pazuello, aliás, que atuou para militarizar o Ministério da Saúde enquanto chefiou a pasta.
A nota é exatamente aquilo que Bolsonaro esperava do ministro da Defesa, general Braga Netto, ao coloca-lo no lugar do general Fernando Azevedo e Silva em março. E ao provocar a substituição dos três comandantes das Forcas Armadas. Desejava alguém que saísse em sua defesa e em oposição a quem o fiscaliza e o investiga. Enquanto isso, o Exército, a maior das forças, abaixou a cabeça para a Presidência da República ao absolver o general Eduardo Pazuello. O ex-ministro da Saúde ignorou as regras da corporação ao participar de uma micareta eleitoral com o presidente no Rio de Janeiro. Ficou por isso mesmo.
A questão é se, diante da profusão de nomes de militares, o ministro da Defesa, Braga Netto, e os três comandantes das Forças Armadas, virão a público com outra manifestação, desta vez com um repúdio aberto à corrupção. Pois ele foi o grande ausente da nota anterior.