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Leonardo Sakamoto

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Roubou miojo por fome? Ladra. Permitiu 600 mil mortes por covid-19? Mito

Getty Images
Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

13/10/2021 18h42

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Após ter sido presa por furtar dois miojos, dois refrigerantes e um refresco em pó, no dia 29 de setembro, em um supermercado de São Paulo, e ter seu pedido de liberdade negado duas vezes pela Justiça, uma mulher teve finalmente sua prisão revogada pelo ministro Joel Paciornik, do Superior Tribunal de Justiça (STJ) nesta quarta (13).

Para manter uma mãe de cinco filhos, desempregada, em situação de rua e que roubou por estar com fome no xilindró afirmou-se que ela não era ré primária. O que faz sentido para o naco da população que acredita que a proteção aos dois miojos é um princípio acima da garantia da dignidade humana na escala de valores da civilização.

O caso dessa mãe não é o primeiro, nem será o último. No dia 26 de abril deste ano, Yan e Bruno foram mortos após terem furtado pacotes de carne no supermercado Atakadão Atakarejo, no bairro de Amaralina, em Salvador. Eles teriam sido entregues a traficantes pelos seguranças da empresa, sendo torturados e executados a tiros.

Em julho de 2019, um jovem negro foi despido, amordaçado e chicoteado por dois capatazes após tentar furtar barras de chocolate em uma unidade do supermercado Ricoy, na periferia de São Paulo. O caso ganhou as redes sociais após as imagens gravadas pelos próprios algozes serem divulgadas. Tipo um Abu Ghraib tupiniquim.

Sueli foi condenada pelo roubo de dois pacotes de bolacha e um queijo minas em uma loja. Ademir, no desespero, furtou coxinhas, pães de queijo e um creme para cabelo em um supermercado. Foi levado a um banheiro e espancado até a morte. Valdete foi condenada a dois anos de prisão em regime fechado por ter roubado caixas de chiclete. Maria Aparecida foi mandada para a cadeia por ter furtado um xampu e um condicionador em um supermercado - perdeu um olho enquanto estava presa.

O princípio da insignificância pode ser aplicado quando o caso não representa riscos à sociedade e não tenha causado lesão ou ofensa grave. Por exemplo, roubar miojo para aplacar a fome. Tipo de coisa que não deveria levar à cadeia. Seja pela inutilidade da punição, pelo seu custo ou mesmo pelo déficit de humanidade que isso representa.

O Supremo Tribunal Federal vem desconsiderando furtos de pequeno valor como crime. Essa conduta não gera uma obrigação para todos os juízes e desembargadores de instâncias inferiores, mas sinaliza o que pode acontecer com o caso se ele subir às cortes superiores. Até lá, a mulher de 41 anos, mãe de cinco, ficou detida por produtos no valor de R$ 21,69.

Não creio que prender alguém por conta de dois miojos vai ajudar em sua reinserção social ou mesmo evitar novos furtos, o que mostra uma sanha mais punitiva do que educativa. Mesmo a abertura de um processo é, a meu ver, acintoso, pois força o Estado a gastar tempo, recursos humanos e dinheiro em algo cuja solução passaria pela geração de empregos e criação de estruturas de assistência social.

Ninguém está defendendo quem erra ou comete crimes. O que está em jogo aqui é que tipo de sociedade nos tornamos ao acreditarmos que punições severas para coisas ridículas (mesmo reincidentes) têm função pedagógica. Até porque se uma família passava fome é porque o Estado falhou retumbantemente em sua responsabilidade de garantir um mínimo de dignidade a ela.

Tendo como base nossa tradição e legislação, o caso serve para nos lembrar que a integridade do patrimônio segue acima da dignidade da vida. E que não gostamos de Justiça, mas de uma boa vingança mesmo.

O fascinante é que nosso sistema é estruturado de forma a afastar do convívio social quem rouba dois pacotes de miojo. Mas manter no poder o responsável por milhares de mortes em uma pandemia que ainda não terminou.

O epidemiologista Pedro Hallal, da Universidade Federal de Pelotas, estima que mais de 400 mil das 600 mil mortes poderiam ter sido evitadas caso Jair Bolsonaro não tivesse promovido tratamentos e remédios ineficazes, atacado o isolamento social e o uso de máscaras, divulgado que vacinas transformariam pessoas em jacarés e matam adolescentes.

A gravidade das evidências reunidas contra o presidente da República é sólida o suficiente para levá-lo ao banco dos réus por crimes contra a humanidade, enquanto o que foi cometido por todos os citados neste texto demanda, no máximo, uma repreensão. Contudo, muitos como eles são presos diariamente e Bolsonaro segue no cargo, livre para continuar sua política de morte.

Pois não é todo mundo que tem um procurador-geral da República como fiel escudeiro e um presidente da Câmara dos Deputados como sócio.

Construímos um país no qual um rico pode deixar de pagar milhões em impostos mandando para paraísos fiscais que o Estado e parte da sociedade vai passar a mão na cabeça dele, afirmando que está agindo dentro da lei para evitar a pesada carga tributária. Esse mesmo Estado acha que o lugar de quem roubou miojo para matar a fome é a cadeia e que o lugar de quem permitiu mais de 600 mil mortes é o Palácio do Planalto.

Precisamos urgentemente refundar o Brasil.