Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Bolsonaro trata Enem como um exame pornográfico só para excitar seu público
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
Após conseguir uma vaga para a filha caçula na base da carteirada no disputado Colégio Militar de Brasília, sem que ela precisasse passar por nenhuma avaliação de conhecimento, Jair Bolsonaro atacou o Enem, nesta quarta (18), criticando o exame por, na sua opinião, não avaliar conhecimento.
Ver Bolsonaro discutir seleção por mérito seria engraçado, dado o surrealismo da situação, se não fosse enfadonhamente trágico. Pois não foi a primeira vez em que o presidente deixou claro que acredita poder usar o cargo para beneficiar seus filhos. Por exemplo, em meio à frustrada indicação de Eduardo Bolsonaro ao cargo de embaixador nos Estados Unidos, disse Jair em julho de 2019: "Lógico, que é filho meu, pretendo beneficiar filho meu, sim. Pretendo, se puder, dar filé mignon".
"Olha o padrão do Enem no Brasil. Pelo amor de Deus. Aquilo mede algum conhecimento? Ou é ativismo político e na questão comportamental?", declarou ele durante um turismo disfarçado de viagem de trabalho ao Oriente Médio.
Por conta de algumas perguntas relacionadas a direitos humanos ou que trataram da ditadura militar que ele apoiou, Bolsonaro ataca os temas da prova. Desta vez, disse aos repórteres: "Pelo amor de Deus. Você tem família, tem filhos, que temas esquisitos esses que havia no passado. Acaba com isso", afirmou.
Para os 15% que acreditam em tudo o que o presidente diz (número do Datafolha), a prova do Enem deve ser uma sequência de questões como os impactos biológicos do uso da mamadeira de piroca, os cálculos de resistência sobre os circuitos elétricos dos vibradores, a interpretação de texto de manuais de bukake e uma redação para que os candidatos discorram a respeito da importância social do golden shower.
A questão é que esses 15% não vão ler, apenas pinçarão uma questão que desgostam entre dezenas de outras para atestar que os quatro cavaleiros do apocalipse estão marchando sobre o Brasil e que só Jair, o patriarca das rachadinhas, pode defender a moral e os bons costumes.
Da mesma forma que nas eleições de 2018, quando o bolsonarismo distribuiu mentiras de que Fernando Haddad (PT) implantara a tal mamadeira, o presidente mente sobre o Enem porque sabe que esse mentira atiça parte do seu público, paranoico por uma confirmação de que o país está sob ataque de gente que quer fazer sexo com carneiros na sala de jantar.
Como muitos de seus seguidores mais fiéis, Jair nunca deve ter tido curiosidade para ler uma prova do Enem do começo ao fim - pelo menos, não após a aplicação do exame. O interesse dele é para que ela seja lida antes por seus assessores, a fim de tentar trocar questões que avaliam conhecimento por aquelas que verificam se o candidato é alinhado com a visão de mundo de seu governo, apesar de dizer que nunca fez isso.
O que é uma sacanagem, porque todos os candidatos sabem o que está no programa de Enem, mas nem todos conhecem o programa do Jair.
O presidente afirmou que o Enem está começando a ficar com a "cara do governo" em meio às demissões de servidores do Inep, órgão responsável pela prova, que reclamaram de pressões e da entrada de pessoas estranhas nas salas onde a avaliação é montada.
E o ministro da Educação, Milton Ribeiro, disse, nesta quarta, na Câmara, que o Enem terá a "cara do governo no sentido de competência, honestidade, seriedade". E com isso dá uma aula aos candidatos, ensinando figuras de linguagem como o sarcasmo e o cinismo.
É fato que a educação básica precisa melhorar e muito no país, a questão é se o governo vai ser aliado no processo ou só quer usar a educação para a sua guerra cultural particular - como tem sido até aqui.
Ao tratar do assunto, Bolsonaro deu uma série de exemplos de países que o Brasil deveria se espelhar nessa área, como o Catar e a Coreia do Sul.
Sobre o Catar, espero que ele não esteja se referindo aos milhares de trabalhadores migrantes em situação de escravidão contemporânea que ajudaram a construir o pequeno país. Porque esses não contavam com o mínimo de apoio para deixar de serem instrumentos descartáveis de trabalho.
Já a Coreia do Sul teve um investimento maciço em educação. Como fazer isso por aqui se temos uma parcela da população que acredita que a questão se resume apenas à má gestão de recursos, ignorando baixos salários, falta de estrutura e escolas até sem água, papel higiênico e merenda, que dirá internet rápida?
Isso sem contar um ministro da Economia que, em meio à negociação para o retorno do auxílio emergencial, fez chantagem grossa, condicionando o pagamento de novas parcelas ao fim da exigência de gastos mínimos do poder público em educação como contrapartida.
O Enem até que cumpre bem o que se propõe. Quem não está avaliando corretamente os candidatos somos nós, os eleitores.