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Leonardo Sakamoto

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Colômbia descriminaliza aborto, Brasil trata criança estuprada como vilã

Colunista do UOL

23/02/2022 09h26

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A Colômbia decidiu, nesta segunda (21), que nenhuma mulher irá mais para a cadeia se realizar um aborto até a 24ª semana de gestação. Até a decisão da Corte Constitucional, que descriminalizou a interrupção da gravidez, cerca de 400 eram condenadas anualmente.

Enquanto isso, o Brasil tentou impedir que uma menina de dez anos, grávida após ser constantemente estuprada pelo tio desde os seis, decidiu por um aborto já previsto em lei. Dez anos. Estuprada desde os seis. Pelo próprio tio. Representantes do governo federal foram enviados a São Mateus (ES) para tentar manter a gravidez.

A história é bem conhecida e chocou o país. Em 2020, radicais ultraconservadores cercaram o hospital em que a menina realizaria o procedimento, ameaçando-a de morte, bem como os médicos e profissionais de saúde envolvidos. Nas redes sociais, provocaram náuseas ao sugerir que ela tinha aceitado o sexo com o tio.

O caso não foi o primeiro. Por exemplo, a interrupção da gravidez de gêmeos em uma menina de nove anos que era estuprada desde os seis pelo padrasto na casa em que viviam, no interior de Pernambuco, levou a críticas de religiosos... aos médicos que realizaram o procedimento.

Como repito há 15 anos neste espaço, defender o direito ao aborto não é defender que toda gestação deva ser interrompida. E sim que as mulheres tenham a garantia de atendimento de qualidade e sem preconceito por parte do Estado se fizerem essa opção.

Há uma questão pragmática, de saúde pública: abortos vão acontecer diante do desespero de uma menina ou de uma mulher. Quer nós homens, políticos, religiosos, cidadãos comuns, concordemos ou não. Ou seja, para além do debate religioso, legal e filosófico, essa é uma questão de redução de danos. O que pouco importa para quem usa a discussão como parte de seu projeto de poder.

Após a notícia na Colômbia, o presidente Jair Bolsonaro (PL) quis surfar na onda de revolta de seus seguidores ultraconservadores e tuitou dizendo que, se depender dele, lutará pela vida das crianças.

O que é uma mentira, uma vez que ele colocou a vida de milhões de brasileiros entre cinco e 11 anos em risco ao atrasar e sabotar o processo de imunização contra a covid-19 apenas para agradar os negacionistas que fazem parte de seu eleitorado.

A reação de Bolsonaro mostra que a questão do direito ao aborto estará em sua campanha pela reeleição neste ano, junto com o pacote de pautas comportamentais.

Ação no STF busca descriminalizar aborto realizado em até 12 semanas

Com seus comentários, ele ajudou a colocar fogo no debate por conta do limite de 24ª semana de gravidez. Pesquisas apontam que a esmagadora maioria das interrupções acontece até a 12ª semana nos locais onde é descriminalizado. Sim, o aborto é mais tardio em locais onde é proibido ou parcialmente liberado, como no Brasil, exatamente pelo medo e pela falta de condições.

O prazo de 12 semanas é, aliás, o que vem sendo usado na defesa de uma ação no Supremo Tribunal Federal que pede o fim de punições para a interrupção de gravidez ocorrida dentro desse período. Não há previsão para que ele seja analisado.

Em dezembro de 2020, a Argentina aprovou o direito das mulheres de optarem por um aborto até a 14ª semana de gestação, independentemente do motivo, através de votação na Câmara e no Senado. Naquele momento, os ultraconservadores no Brasil também fizeram um escândalo. Ou seja, a questão não é o prazo.

Contrários ao avanço aprovado por nosso vizinho dizem que ele vai levar a um aumento no número de abortos. Não, na verdade levará a uma redução no número de mulheres que morrem ou ficam com sequelas devido a abortos clandestinos. Ou que são presas, processadas ou humilhadas por conta disso.

Garantir que o Estado reconheça o direito ao aborto seguro evita milhares de mortes por procedimentos clandestinos ou realizados de forma precária. A Colômbia, a Argentina, o México, o Uruguai perceberam isso. O Brasil ainda não. Ou percebeu e não se importa.

Após a Argentina, bolsonaristas intensificaram articulações internacionais envolvendo governos de ideologia ultraconservadora para fortalecer a posição contrária ao direito ao aborto. A pauta já é uma das principais, ao lado da pedofilia, nos eventos e fóruns de extrema direita do qual tem participado a atual administração brasileira. E que o Brasil tem empunhado essa bandeira em diferentes instâncias das Nações Unidas.

E pressão junto ao Poder Judiciário para garantir decisões contrárias à interrupção da gravidez também foi adotada como ação prioritária. Mas a questão não se resume ao STF. Não raro, juízes têm negado, por questão ideológica, o direito ao aborto mesmo para gestantes que, por lei, teriam o direito ao procedimento em um hospital público. Setores do governo agem para fortalecer esses magistrados e esse posicionamento.

Se nós, homens, tivéssemos útero, o direito ao aborto seria cláusula pétrea

Enquanto a questão não é resolvida no Brasil, o aborto segue "livre" para quem conta com recursos financeiros para ter acesso a clínicas seguras, ou seja, a classe alta e a média alta, enquanto a maioria da população acaba sofrendo as consequências da clandestinidade.

Nos casos autorizados por lei, brasileiras que recorrem à interrupção da gravidez enfrentam os mais diversos tipos de violência. Há médicos que recusam atende-las em processo de abortamento espontâneo. Servidores públicos chamam a polícia alegando que elas cometeram crime. Isso sem falar do calvário de ter que viajar muitos quilômetros para encontrar um serviço público que possa acolhê-las, pois há médicos e hospitais que se negam a cumprir a lei.

Enquanto isso, as bancadas do fundamentalismo religioso no Congresso Nacional, em Assembleias Estaduais e Distrital e nas Câmaras Municipais têm atuado em nome de projetos que são retrocessos à dignidade. Como os que buscam criminalizar a orientação sobre o aborto legal, com penas maiores se quem ajudar for agente de saúde. Ou as campanhas para reduzir a previsão de aborto legal, permitido no Brasil em três situações: estupro, risco de vida para a mãe e anencefalia.

O governo não tem força para proibir o aborto em qualquer circunstância, como defende o pessoal que faz cerco a hospital para ameaças criança grávida após estupro. Mas também não há como a pauta avançar via Congresso. Apesar de serem maioria na população no Brasil, mulheres representam 14,5% do Congresso Nacional.

A proporção que toma um caso como o da menina de dez anos de São Mateus (ES) e a reacão raivosa às mudanças na Colômbia, na Argentina e no Uruguai, muito por conta de políticos que acham que o corpo de meninas e mulheres é um campo de batalha para a sua cruzada particular, é a prova que estamos ainda mais próximos de uma distopia apocalíptica do que de uma sociedade de direitos no Brasil. Mas que nunca foi tão importante resistir.

Em tempo: Dados do Ministério da Saúde mostram que, entre 2011 e 2017, foram notificados 58.037 casos de violência sexual contra crianças e 83.068 contra adolescentes. Entre as crianças, o principal tipo de violência foi o estupro (62%), seguido do assédio sexual (24,9%). O mesmo ocorreu entre os adolescentes, com estupro à frente (70,4%) e assédio sexual (19,9%).

O dado mais relevante é que, entre as crianças, os perpetradores da violência foram os próprios familiares (37%), seguidos por amigos e conhecidos (27,6%), desconhecidos (6,5%). A categoria "outros" representa 28,9%. A maioria dos casos de violência sexual contra crianças (69,2%) é cometido na própria residência das vítimas. Ou seja, família e casa, aquilo que é vendido a elas como seu porto seguro.