Vitória de Fernanda Torres lembra ao globo que perdoar golpes não é opção
A espectacular vitória de Fernanda Torres no Globo de Ouro, neste domingo (5), não é apenas a consagração de uma excepcional interpretação em um baita filme baseado num livro para o qual faltam adjetivos. A luta de Eunice Paiva após seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva, ser detido e morto pela ditadura que mandou no Brasil entre 1964 e 1985 é um lembrete ao mundo do que acontece à vida cotidiana quando golpes de Estado têm sucesso. E que, por isso, não podem ser esquecidos, perdoados, anistiados.
"Ainda Estou Aqui", sucesso de público no país, reconta um período de censura, violência, arbitrariedades e assassinatos diluindo a política no drama familiar. Dessa forma, traz sutilmente a questão da ditadura para os espectadores, sendo, por isso, mais eficaz em espalhar a mensagem que um filme engajado.
Por ser didático e focar na família, não fica restrito à bolha e pode atingir conservadores. E, o mais importante, muitos jovens que parecem ignorar que a democracia que herdaram custou o suor, o sangue, a tortura e a saudade de muita gente. Não raro, caem nas mentiras daqueles que dizem que professores, universidades e conhecimento não servem para nada. Bom mesmo é só o que vem do WhatsApp.
Mas a interpretação de Eunice Paiva por Fernanda Torres também conta uma história universal ao mostrar as consequências na vida das famílias que se tornam alvos da violência de regimes ditatoriais. Com a ascensão de governos autoritários, a história escrita por Marcelo Rubens Paiva e adaptada para as telas por Walter Salles é local e global ao mesmo tempo.
Não tenho dúvidas que membros da Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood, que decidem o Globo de Ouro, conseguiram ver na personagem as Eunices de seus países ou regiões de origem.
Para quem torce o nariz dizendo que esse debate é "politizar" o filme, sugiro que o assista. Se contar a trajetória de uma mulher que luta para que a ditadura assuma o que fez com o marido e para cuidar da família após o desaparecimento dele não é político, então nada mais é.
A torcida avassaladora por Fernanda Torres nas redes sociais, que obliterou uma campanha da extrema direita brasileira para atacar o governo brasileiro e passar pano para o genocídio comandando por Benjamin Netanyahu em Gaza, ajuda com que o filme seja visto por mais gente. E, portanto, o debate sobre o impacto dos anos de chumbo seja popularizado. Mesmo aqueles que xingaram a o filme, o livro, a atriz e até a sua mãe, Fernanda Montenegro, na noite deste domingo, ajudaram a bombar "Ainda Estou Aqui". Obrigado, extremistas.
Golpes perdoados semeiam outros golpes no futuro. A anistia brasileira a torturadores, assassinos, golpistas e ditadores ajudou a engravidar o país de um extremismo que fez nova tentativa entre outubro de 2022 e 8 de janeiro de 2023, também com a participação de generais, além de civis.
Que a merecida premiação dada à atuação de Fernanda Torres lembre que esquecer não é uma possibilidade. Anistiar, muito menos.
Em tempo: Pesquisa Genial/Quaest, divulgada nesta segunda (6), mostra que 86% dos brasileiros reprovam os atos golpistas de 8 de janeiro, promovidos pela extrema direita, que destruíram as sedes dos Três Poderes, em Brasília. Dos entrevistados, 50% creem na influência de Jair Bolsonaro na organização dos ataques, enquanto 39% afirmam que isso não aconteceu. Há quase um ano, os números eram 51% e 38%, respectivamente - uma oscilação dentro da margem de erro de um ponto que mostra estabilidade. O que aponta que, dois anos depois, os brasileiros concientes de seu país e da História relutam em esquecer.