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Uma morte em Recife poderia ser 'fatalidade', mais de 90 indicam um projeto
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As mais de 90 mortes registradas na Grande Recife com as chuvas dos últimos dias são uma amostra do caos que as próximas décadas devem reservar por conta de um misto de desigualdade social e negacionismo diante das mudanças climáticas. Ainda mais porque temos governantes que usam tragédias para conseguir voto.
Boa parte dessas mortes poderia ter sido evitada. Mas autoridades do poder lutam, neste momento, para que a população se convença de que nada a evitaria, torcendo para que os brasileiros acreditem que a culpa foi do céu para afastar sua responsabilidade sobre a terra que desceu morro abaixo. Isso quando não jogam a culpa em terceiros.
Recife é um dos locais que mais devem sofrer com o aumento da frequência de eventos extremos, segundo especialistas do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) das Nações Unidas. Como as chuvas fortes e seus consequentes deslizamentos de terra, que atingem os morros nas regiões Noroeste e Sul do município, com alta densidade demográfica e moradias precárias.
Como todo recifense bem sabe, os rios Capibaribe e Beberibe juntam-se na costa da cidade para formar o oceano Atlântico. O problema é que o aumento da temperatura global está elevando o nível do mar, que vai, dessa forma, voltar para casa, inundando as planícies da cidade. E tornar um inferno a vida em locais pobres, como a Brasília Teimosa.
Esse futuro sombrio deveria ser o bastante para alertar governantes a mitigar os impactos dessas transformações e investir pesado na adaptação da Grande Recife e do país para o pior. Diante de alertas poderosos como estas últimas chuvas, bilhões de reais deveriam estar sendo anunciados para programas de moradia decente, de urbanização e de ações para o clima.
Contudo, o presidente Jair Bolsonaro (PL), medalhista brasileiro na categoria de Arremesso de Responsabilidade à Distância, usou o momento para criticar o governador Paulo Câmara (PSB), ao dizer que "faltou iniciativa". Nada sobre a sua responsabilidade ao implodir o programa habitacional urbano subsidiado para os muito pobres, por exemplo.
Já a prefeitura demorou dois dias para acionar o plano de contingência após receber o alerta de que o céu iria desabar. Tal como o caos em Petrópolis, com 233 mortos em 15 de fevereiro deste ano, a tragédia na Grande Recife é um empreendimento com sócios na União, no Estado e no município.
Uma coisa é a triste ocorrência de uma fatalidade que pode escapar mesmo à mais rígida aplicação de políticas públicas de moradia, urbanização, alerta e remoção e de combate às mudanças climáticas. Mas uma região metropolitana preparada não produziria esse número de perdas humanas e materiais mesmo com a chuva que caiu.
Essa quantidade de mortos não são decorrência do acaso, mas de um projeto de país que pensa as cidades para os mais ricos enquanto empurra a força de trabalho para locais perigosos, empilhando-a em morros e a comprimindo-a em várzeas de rios, sempre à espera da próxima tragédia.
Ninguém espera que governantes proíbam a água de cair, mas que, ao menos, sejam capazes de preparar as cidades para sua chegada - com estrutura, mas também com avisos e retiradas de locais vulneráveis. Enquanto, elas não forem adaptadas para as chuvas, o que levaria tempo se uma mudança radical começasse hoje, que haja um sistema de evacuação digno.
Ainda é possível que dezenas de mortes não se tornem centenas ou milhares em alguns anos. Mas vai depender de ações diretas para preparar o país para os tempos sombrios que virão.
Infelizmente, o que temos visto é um governo que tira milhões que seriam usados para evitar que pobres sofressem com a covid-19 destinando-os para a compra de tratores a fim de beneficiar aliados políticos. Ou que gasta milhões que poderiam ser usados para levar água encanada e luz elétrica para escolas e autorizando a compra de superfaturados kits de robótica ou ônibus escolares rurais.
O Brasil sob Jair Bolsonaro preferiu ir na direção contrária da solução, investindo em jogar carbono na atmosfera através de queimadas e desmatamento na Amazônia, no Cerrado, no Pantanal, na Mata Atlântica. E é apoiado por um espectro amplo de governadores e prefeitos, de diversos matizes ideológicos.
O relógio para a própria extinção humana (a de bilhões de pobres, pelo menos, porque os ricos herdarão a porcaria que sobrar) está em contagem regressiva.
Como já disse aqui, o Brasil não precisa de gestores que peçam a Deus para evitar e mitigar novas catástrofes, como se elas fossem fato consumado, mas de gente dedicada a resolver o problema por conta própria, com base na ciência e na mudança de prioridades da política.
Pois uma morte pode ser fatalidade, mas mais de 90 é omissão. Da mesma forma que 670 mil é crime contra a humanidade.