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Leonardo Sakamoto

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Pintou clima' de Bolsonaro é irmã abjeta de 'dentes arrancados' de Damares

Colunista do UOL

16/10/2022 09h14

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Irritado com a repercussão de suas declarações a um podcast, quando disse que "pintou um clima" entre ele e meninas "bonitas" de 14 anos, Jair Bolsonaro fez uma live, na madrugada deste domingo (16), para culpar o PT. O nervosismo, na verdade, vem da percepção de que o feitiço virou-se contra o feiticeiro.

O presidente reclama que suas falas foram retiradas de contexto e que ele não praticou pedofilia. Tenta, dessa forma, se livrar de uma coisa terrível que disse afirmando que não fez algo mais terrível ainda. A questão é que a expressão "pintou um clima", usada por um senhor idoso de 67 anos para se referir a meninas de 14, é abjeta em qualquer contexto.

Os responsáveis por essa situação constrangedora são ele e sua campanha, que vêm tentando convencer o eleitorado de que o maior problema do Brasil não é a inflação, a fome e o subemprego, mas milhões de crianças que estariam em risco de serem transformadas em objetos descartáveis de sexo. Para tanto, criam monstros que, eventualmente, voltam para assombrá-los. Principalmente, quando falam mais que a boca.

Primeiro, foi a senadora eleita Damares Alves que divulgou uma história sem lastro na realidade durante um culto evangélico transformado em comício, no dia 8, em Goiânia, para conseguir uns votos em Jair. Para incutir o medo e, dali, conseguir apoio, disse que crianças de três e quatro anos foram traficadas para a Ilha de Marajó (PA) e tiveram dentes arrancados para "não morderem na hora do sexo oral".

"Nós descobrimos que essas crianças comem comida pastosa para o intestino ficar livre para a hora do sexo anal. Bolsonaro disse: 'Nós vamos atrás de todas elas'. E o inferno se levantou contra esse homem. A guerra contra Bolsonaro que a imprensa, o Supremo e o Congresso levantou, acreditem, não é uma guerra política. É uma guerra espiritual", prosseguiu ela.

O Ministério Público Federal vasculhou 30 anos de denúncias e não encontrou nada, a CPI da exploração sexual de crianças e adolescentes no Pará, que analisou mais de 100 mil casos, também não. Em reservado, servidores do próprio Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que foi comandado por Damares, dizem que essas denúncias nunca passaram por lá. Ou seja, o governo nada investigou.

O presidente da República adotou a mesma estratégia que sua ex-ministra. Falando a um podcast, ele tentou transformar uma visita que fez a uma casa em São Sebastião (DF) para criar uma história de exploração sexual de crianças e adolescentes e aproveitar para bater na Venezuela, seu espantalho preferido.

"Parei a moto numa esquina, tirei o capacete e olhei umas menininhas, três, quatro, bonitas, de 14, 15 anos, arrumadinhas num sábado numa comunidade. E vi que eram meio parecidas. Pintou um clima, voltei, 'posso entrar na tua casa?' Entrei", afirmou Bolsonaro.

"Tinha umas 15, 20 meninas, sábado de manhã, se arrumando, todas venezuelanas. E eu pergunto: meninas bonitinhas, 14, 15 anos se arrumando num sábado para quê? Ganhar a vida. Você quer isso para a tua filha, que está nos ouvindo aqui agora. E como chegou neste ponto? Escolhas erradas."

O mais impressionante é que a visita de Bolsonaro à tal residência foi transmitida por redes sociais, segundo ele própria. E, na época, ele nada disse sobre as suspeitas de exploração sexual de adolescentes, denúncia que ele trouxe para o podcast. Ou seja, se havia um crime em andamento, ele teria que ter pedido providências, caso contrário, prevaricou. Como Damares também teria prevaricado por nada ter feito - se a história de ambos fosse verdade, claro.

Rápida e certeira reportagem de Camila Turtelli e Amanda Rossi, do UOL, encontrou uma das venezuelanas da história que explicou que, quando Jair visitou o local, estava sendo promovido um curso de estética para refugiadas. E, entre as adolescentes, estava sua filha e sua sobrinha.

Ou seja, a entrevista de Bolsonaro ao podcast ainda transformou um projeto social em uma casa de aliciamento de meninas só para ser útil ao seu discurso eleitoral.

O agravante, neste caso, é que o presidente realmente disse que "pintou um clima" entre ele e "meninas bonitas" de 14 anos. Isso é abjeto e inaceitável, mesmo se considerarmos um alto nível de condescendência diante das dificuldades linguísticas do presidente.

A estratégia de levar a batalha eleitoral para o campo dos costumes e do comportamento, especialmente a sexualização de crianças e adolescentes, pode ter conseguido muitos votos para o presidente mas, neste caso, por culpa exclusivamente dele, só trará dor de cabeça. Poderia ter dito que sentiu "empatia" com as adolescentes ou "pena" por elas. Acabou cometendo um ato falho pelo qual terá que responder.

A extrema direita em todo o mundo passou anos acusando seus adversários de cometer pedofilia. No Brasil, chegaram ao ponto de achar pelo em ovo em exposições e performances de arte e usar de violência para fechar museus, além de circular boatos de que vacina contra a covid-19 fazia parte de um plano de bilionários pedófilos para controlar as pessoas. Agora, a mesma extrema direita tenta passar pano para o fato de seu candidato ter dito que "pintou um clima" entre com meninas de 14 anos. O mundo não gira, capota.