Leonardo Sakamoto

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Reportagem

Quase 60% dos trabalhadores de apps já sofreram violência ou adoeceram

Dos motoristas e entregadores de "plataformas digitais", 58,9% relatam ter sofrido acidente de trânsito, adoecimento, assalto, agressão ou sido alvo de tiro enquanto trabalhavam para as empresas. O levantamento foi realizado pelo projeto Caminhos do Trabalho, parceria entre Fundacentro e a Universidade Federal da Bahia, entre março de 2021 e junho de 2023, em cinco estados: Bahia (onde a maioria das entrevistas foi colhida), Ceará, Pernambuco, Paraná e São Paulo.

Quando considerada o veículo, 63,6% dos motociclistas já sofreram infortúnios, 50% dos ciclistas e 45,5% dos que guiavam carros.

Esse cenário de intensa acidentalidade é corroborado até mesmo pelas entidades empresariais. Pesquisa do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), patrocinado pela Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), aponta que 25% dos entregadores entrevistados sofreram acidentes, 18% sofreram racismo ou violência de gênero e 8% foram assaltados durante a jornada de trabalho nos últimos três meses.

Entre motoristas de aplicativos, esses percentuais ficaram, respectivamente, em 15%, 14% e 9%.

Em 2020, o primeiro levantamento do projeto Caminhos do Trabalho, abrangendo ciclistas e motociclistas, havia indicado que um a cada três entrevistados (33%) já havia se acidentado a serviço das "plataformas".

Para efeito de comparação com o universo do mercado de trabalho, 2,6% das pessoas ocupadas sofreram algum acidente de trabalho nos 12 meses anteriores à entrevista, segundo dados da última pesquisa nacional de saúde, realizada em 2019.

Aspecto central da saúde e segurança do trabalho, e que ajuda a entender a acidentalidade de entregadores e motoristas que trabalham para a empresa que usam "plataformas digitais", é a carga de trabalho que enfrentam.

De acordo com a investigação da Fundacentro e da UFBA, os entrevistados trabalham 6,4 dias por semana e 55,3% deles, todos os dias. Em média, essas pessoas trabalham 9h54min por dia e 56,9%, dez ou mais horas diárias.

Média de remuneração é de menos de dois salários mínimos

Os trabalhadores declaram receber uma remuneração bruta (sem contar os custos, como gasolina) mensal média paga pela empresa (ou empresa principal, quando mais de uma) de R$ 2.579. A renda bruta por veículo, sem considerar os gastos dos trabalhadores, é R$ 2.849 nos carros, R$ 2.755 nas motos e R$ 1.553 nas bicicletas.

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Já o valor apurado por meio dos documentos disponibilizados pelos trabalhadores (como prints e extratos bancários) da remuneração bruta média sem descontos é de R$ 1.737. A renda bruta apurada por veículo utilizado é de R$ 1.817 para carros, R$ 1.803 para motos e R$ 779 para bicicletas.

A pesquisa não estimou custos, contudo, mesmo se estes forem semelhantes aos valores do levantamento patrocinado pelas empresas, o salário líquido de motoristas de carro e motociclistas, à luz dos rendimentos brutos aqui apresentados, orbitam pouco acima de um salário mínimo por mês, e os ciclistas abaixo do salário mínimo.

O salário mínimo vigente no país é de R$ 1.320 mensais.

Por conta das longas jornadas e quantidade de dias trabalhados, a remuneração por hora oferece um panorama mais realista dos ganhos desses trabalhadores. Considerando a jornada semanal, os trabalhadores ganham (bruto), em média, R$ 9,88 por hora pelos rendimentos declarados e R$ 6,54 por hora pela renda apurada.

Pelo valor bruto recebido por hora à disposição da empresa, a média declarada de todas as categorias não chega a dois salários mínimos por hora, e a média da renda apurada por hora fica muito próxima de um salário mínimo. Se o cálculo se atém aos trabalhadores que mantêm exclusividade para uma única empresa, a média é de R$ 10,78 para o valor bruto declarado e R$ 7,37 para o valor apurado por hora trabalhada.

A pesquisa entrevistou 160 pessoas, 96,9% homens, 93,2% pretos ou pardos, 72% com ensino médio completo, 81,8% de Salvador (BA). A média de idade é de 35 anos.

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Os entrevistados trabalham ou trabalharam para as seguintes empresas: iFood, Uber, Rappi, Zé Delivery, 99 POP, InDriver, Bozo Delivery, Lala Move, James, Cornershop, Chipfy, Ame Flash e Chip (Americanas). Dos entrevistados, 73,5% trabalhavam há mais de um ano para elas.

Em toda a vida profissional, 52,3% dessas pessoas trabalharam para uma única "plataforma" e 70,4% para apenas um ou duas. Na média, os entrevistados trabalharam ou trabalham para 2,1 "plataformas".

Longas jornadas, baixa remuneração, sem descanso

O que o levantamento mostra é que esses motoristas e entregadores trabalham 1) em condições extremamente arriscadas, 2) por longas jornadas diárias, 3) sem descanso semanal, 4) percebendo remuneração baixíssima e 5) geralmente para uma ou duas empresas apenas.

A investigação constitui uma segunda edição do levantamento realizado em 2020, agora com amostra maior e diferentes procedimentos metodológicos. Em particular, o aprofundamento do contato com a maioria dos entrevistados ao longo do tempo, possibilitando maior consistência e detalhamento das questões.

A necessidade deste novo levantamento decorreu da permanência de um cenário extremamente contraditório: informações sobre o contrato e as características das relações entre trabalhadores e empresas nunca foram produzidas de forma tão sistemática como ocorre com o uso de "plataformas digitais", entretanto, ao mesmo tempo, nunca foram tão ocultadas pelas corporações.

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Em qualquer atividade empresarial com finalidade lucrativa, o reconhecimento do vínculo de emprego é um critério civilizatório mínimo para a proteção das condições e da própria vida das pessoas que trabalham. Todavia, talvez não haja um desfecho, no curto prazo, para que as empresas que se autodenominam "plataformas" admitam a natureza do vínculo que mantêm com seus trabalhadores.

Tendo isso em vista, impõe-se como imperiosa a criação de normas infralegais, que responsabilizem e obriguem os tomadores dos serviços, independentemente do tipo de vínculo formalmente mantido com os trabalhadores, a seguir parâmetros civilizatórios que adaptem o trabalho nas atividades de transporte de pessoas e mercadorias e no uso dos sistemas digitais informacionais à dimensão humana dos trabalhadores.

(*) Vitor Filgueiras é professor de economia da UFBA e assessor da presidência da Fundacentro e coordenador geral do projeto Caminhos do Trabalho

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.