PMs de SP cantam em treino que vão usar gás para fazer 'vagabundo' desmaiar
Um vídeo que circula nas redes sociais mostra dezenas de policiais militares em formação sendo instruídos a cantar que usarão "gás lacrimogêneo" para fazer "vagabundo" desmaiar pela "falta de oxigênio". Eles são identificados como da 5ª companhia da Escola Superior de Soldados da PM-SP.
"Para dispersar a multidão, eu vou jogar gás lacrimogênio. No vagabundo, eu vou jogar. E vai faltar oxigênio. E o vagabundo vai desmaiar", diz o vídeo. Não há registro de quando ele foi gravado.
Questionada pela coluna, a Polícia Militar informou, em nota, que foi instaurado um procedimento disciplinar para apurar os fatos. Mas que "o coro entoado no vídeo não faz parte das canções e/ou hinos da instituição".
As imagens vêm a público após o Ministério da Justiça e da Segurança Pública demitir três policiais rodoviários federais que causaram a morte de Genivaldo de Jesus Santos por asfixia em maio do ano passado.
Nesse caso de tortura, que gerou comoção internacional, um homem negro de 38 anos foi parado por estar sem capacete em uma moto na BR-101 em Umbaúba (SE). Foi trancado no porta-malas de uma viatura e obrigado a inalar gás lacrimogênio de uma bomba acionada pelos agentes.
Sediada no bairro de Pirituba, na capital paulista, a Escola Superior de Soldados se apresenta como a maior instituição de formação de policiais do país, ministrando um curso de dois anos de duração para os que passaram no concurso. Ao UOL, a PM-SP afirmou que "percebe-se nas palavras [da cantoria] um total equívoco técnico, quanto ao citado gás" e, "portanto, não guarda relação com treinamento ou qualificação policial militar".
Em seu site, a escola diz que incute responsabilidade no futuro profissional, pois ele será muitas vezes "a única autoridade pública visível para amparar as pessoas em situação de maior vulnerabilidade, sendo seu dever servir e proteger as pessoas, respeitando e difundindo na sociedade a supremacia dos direitos humanos".
Tortura contra um civil
Na avaliação da diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, o comportamento exposto no vídeo é grave e revelador de práticas organizacionais enraizadas numa corporação que historicamente usou e abusou da força.
"Infelizmente, essas músicas, esses ritos de socialização, são muito comuns na polícia. Depois do caso Genivaldo, contudo, causa no mínimo espanto que ninguém pensou que isso seria uma péssima ideia. No limite, eles estão cantando algo que trata de tortura contra um civil", afirma.
No posicionamento enviado ao UOL, a PM afirmou que nas Escolas de Formação da Polícia Militar, "além da disciplina de direitos humanos fazer parte extensamente da grade curricular, valores como o respeito à dignidade humana, à vida e à integridade física são reforçados diariamente".
Para Samira Bueno, o grande desafio da formação policial é ir além da grade curricular. "De que adianta esse policial ter tido aula de direitos humanos e discutido racismo se, quando chega no pátio, na atividade em grupo, reproduzem cânticos que falam em torturar um suspeito com gás lacrimogênio até que ele pare de respirar?"