Mortes em Gaza disparam, mas importam menos aos EUA que aquelas em Israel
Nenhuma vida vale mais do que outra e todas as vidas importam. A frase só faz sentido no papel porque, na prática, vivemos em sistemas que criam rankings de valor para a existência. Uma morte a bala de um branco rico nos Jardins ou no Leblon provoca mais comoção do que dezenas de corpos negros no Guarujá ou no Jacarezinho.
A matança terrorista do Hamas provocou mais de 1.400 mortes em Israel. A resposta não veio na forma de busca por justiça, mas de aplicação de vingança coletiva com o terror promovido pelo governo de Benjamin Netanyahu em Gaza. A ação, que se enquadra em crime de guerra contra civis segundo a 4ª Convenção de Genebra, matou mais de 3 mil pessoas com bombas e privou 2,2 milhões de comida, água, remédios e eletricidade.
E por conta do veto dos Estados Unidos à proposta de resolução brasileira no Conselho de Segurança da ONU, nesta quarta (18), que previa o fim dos bombardeios e a criação de corredores humanitários permanentes, os números vão continuar escalando.
A justificativa da embaixadora norte-americana na ONU, Linda Thomas-Greenfield, foi a ausência do direito de Israel em se defender. Na verdade, o que incomodou Tel Aviv foi a condenação da ordem de evacuar a metade norte de Gaza.
O sofrimento pela morte de um único ente querido é imensurável, então não é possível dizer que a dor de um lado é maior que a de outro. Mas a contagem de corpos impõe uma medida objetiva que demonstra a assimetria entre os envolvidos e precisa ser levada em conta. Lembrando que em um dos lados não está o Hamas, uma ínfima minoria que usa seu povo como escudo, mas toda a população vulnerável de Gaza.
Nesse contexto, alguns chamam certas mortes de "crimes" e outras, de "danos colaterais" ou "baixas de conflito". Tudo depende de quem morre e quem enterra o morto. E, claro, de quem conta a sua história - o que joga para setores da imprensa um papel fundamental em criar mortos de primeira e segunda classes ao dar espaço e tratamento diferentes para certas tragédias em detrimento de outras.
A terrível execução de 260 pessoas em uma rave em Israel pelas mãos do Hamas não dá sinais de que irá se repetir. Por outro lado, o massacre de mais 500 pessoas no hospital de Al-Ahly Arab, em Gaza, pode se repetir caso não haja um cessar-fogo - uma vez que médicos e enfermeiros de outras instituições semelhantes já avisaram que não atenderão às ordens de evacuação e os hospitais permanecerão abertos.
Importa muito saber quem disparou o míssil, mas importa também saber quem é capaz de garantir de que mísseis deixem de ser disparados.
A questão presente neste texto é bem simples: qual o patamar de mortos que fará com que os Estados Unidos e parte do Ocidente passem a encarar o que está acontecendo em Gaza como uma matança da mesma forma que já encararam como matança o que foi perpetrado pelo Hamas em Israel? Ou seja, a partir de quando o "direito de defesa" se transforma em "crime contra a humanidade"?
Um dos mais conhecidos políticos palestinos, o médico Mustafa Barghouti, líder da Iniciativa Nacional Palestina, me disse, em entrevista a partir da Cisjordânia, que o ataque a Gaza não era Justiça, mas uma "punição coletiva" perpetrada pelo governo Netanyahu.
Questionei se esmagar os civis em Gaza, aplicando violência demasiada na resposta, não levaria a comunidade internacional a se voltar contra Tel Aviv. Ele respondeu que isso acontecerá, mais cedo ou mais tarde, mas que, neste momento, o mundo ainda está em choque pelas mortes causadas pelo Hamas e, o governo de Israel usa o fato como vantagem.
"É triste reconhecer que isso pode acontecer depois que 3.000 palestinos forem mortos e quando as imagens com crianças morrendo circularem pelo mundo, aí então as coisas devem mudar", afirmou.
Chegamos aos 3.000, e apesar do incômodo gerado pelas cenas de hospitais e escolas destruídas, com crianças mortas, nada indica que o bombardeio vá cessar.
Qual o patamar para o "agora deu"? Mais de 5.000? 10 mil? 50 mil corpos palestinos? Existe tal patamar ou o racismo, o cálculo geopolítico e as necessidades internas (o numeroso eleitorado evangélico conservador norte-americano é fissurado em Israel) atropela tudo?
Com a resposta, o Conselho de Segurança da Nações Unidas, que coloca em xeque a razão de sua própria existência.
Newsletter
OLHAR APURADO
Uma curadoria diária com as opiniões dos colunistas do UOL sobre os principais assuntos do noticiário.
Quero receberO texto proposto pelo Brasil foi vetado pelos Estados Unidos e, portanto, não foi aprovado. Mas cotaram a favor Brasil, França, Malta, Japão, Gana, Gabão, Suíça, Moçambique, Equador, China, Albânia e Emirados Árabes. E se abstiveram Rússia e Reino Unido. Os EUA preferiram apoiar o aliado Israel do que frear um crime contra a humanidade.
Nesse sentido, o CS da ONU poderia, pelo menos, ter a dignidade de criar o Fundo das Nações Unidas para Enterros de Vítimas de Conflitos. Porque o cheiro dos corpos em decomposição no Norte de Gaza, como me contaram médicos que atuam na área, já impregna o ar.