Leonardo Sakamoto

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Opinião

Mortes em Gaza disparam, mas importam menos aos EUA que aquelas em Israel

Nenhuma vida vale mais do que outra e todas as vidas importam. A frase só faz sentido no papel porque, na prática, vivemos em sistemas que criam rankings de valor para a existência. Uma morte a bala de um branco rico nos Jardins ou no Leblon provoca mais comoção do que dezenas de corpos negros no Guarujá ou no Jacarezinho.

A matança terrorista do Hamas provocou mais de 1.400 mortes em Israel. A resposta não veio na forma de busca por justiça, mas de aplicação de vingança coletiva com o terror promovido pelo governo de Benjamin Netanyahu em Gaza. A ação, que se enquadra em crime de guerra contra civis segundo a 4ª Convenção de Genebra, matou mais de 3 mil pessoas com bombas e privou 2,2 milhões de comida, água, remédios e eletricidade.

E por conta do veto dos Estados Unidos à proposta de resolução brasileira no Conselho de Segurança da ONU, nesta quarta (18), que previa o fim dos bombardeios e a criação de corredores humanitários permanentes, os números vão continuar escalando.

A justificativa da embaixadora norte-americana na ONU, Linda Thomas-Greenfield, foi a ausência do direito de Israel em se defender. Na verdade, o que incomodou Tel Aviv foi a condenação da ordem de evacuar a metade norte de Gaza.

O sofrimento pela morte de um único ente querido é imensurável, então não é possível dizer que a dor de um lado é maior que a de outro. Mas a contagem de corpos impõe uma medida objetiva que demonstra a assimetria entre os envolvidos e precisa ser levada em conta. Lembrando que em um dos lados não está o Hamas, uma ínfima minoria que usa seu povo como escudo, mas toda a população vulnerável de Gaza.

Nesse contexto, alguns chamam certas mortes de "crimes" e outras, de "danos colaterais" ou "baixas de conflito". Tudo depende de quem morre e quem enterra o morto. E, claro, de quem conta a sua história - o que joga para setores da imprensa um papel fundamental em criar mortos de primeira e segunda classes ao dar espaço e tratamento diferentes para certas tragédias em detrimento de outras.

A terrível execução de 260 pessoas em uma rave em Israel pelas mãos do Hamas não dá sinais de que irá se repetir. Por outro lado, o massacre de mais 500 pessoas no hospital de Al-Ahly Arab, em Gaza, pode se repetir caso não haja um cessar-fogo - uma vez que médicos e enfermeiros de outras instituições semelhantes já avisaram que não atenderão às ordens de evacuação e os hospitais permanecerão abertos.

Importa muito saber quem disparou o míssil, mas importa também saber quem é capaz de garantir de que mísseis deixem de ser disparados.

A questão presente neste texto é bem simples: qual o patamar de mortos que fará com que os Estados Unidos e parte do Ocidente passem a encarar o que está acontecendo em Gaza como uma matança da mesma forma que já encararam como matança o que foi perpetrado pelo Hamas em Israel? Ou seja, a partir de quando o "direito de defesa" se transforma em "crime contra a humanidade"?

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Um dos mais conhecidos políticos palestinos, o médico Mustafa Barghouti, líder da Iniciativa Nacional Palestina, me disse, em entrevista a partir da Cisjordânia, que o ataque a Gaza não era Justiça, mas uma "punição coletiva" perpetrada pelo governo Netanyahu.

Questionei se esmagar os civis em Gaza, aplicando violência demasiada na resposta, não levaria a comunidade internacional a se voltar contra Tel Aviv. Ele respondeu que isso acontecerá, mais cedo ou mais tarde, mas que, neste momento, o mundo ainda está em choque pelas mortes causadas pelo Hamas e, o governo de Israel usa o fato como vantagem.

"É triste reconhecer que isso pode acontecer depois que 3.000 palestinos forem mortos e quando as imagens com crianças morrendo circularem pelo mundo, aí então as coisas devem mudar", afirmou.

Chegamos aos 3.000, e apesar do incômodo gerado pelas cenas de hospitais e escolas destruídas, com crianças mortas, nada indica que o bombardeio vá cessar.

Qual o patamar para o "agora deu"? Mais de 5.000? 10 mil? 50 mil corpos palestinos? Existe tal patamar ou o racismo, o cálculo geopolítico e as necessidades internas (o numeroso eleitorado evangélico conservador norte-americano é fissurado em Israel) atropela tudo?

Com a resposta, o Conselho de Segurança da Nações Unidas, que coloca em xeque a razão de sua própria existência.

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O texto proposto pelo Brasil foi vetado pelos Estados Unidos e, portanto, não foi aprovado. Mas cotaram a favor Brasil, França, Malta, Japão, Gana, Gabão, Suíça, Moçambique, Equador, China, Albânia e Emirados Árabes. E se abstiveram Rússia e Reino Unido. Os EUA preferiram apoiar o aliado Israel do que frear um crime contra a humanidade.

Nesse sentido, o CS da ONU poderia, pelo menos, ter a dignidade de criar o Fundo das Nações Unidas para Enterros de Vítimas de Conflitos. Porque o cheiro dos corpos em decomposição no Norte de Gaza, como me contaram médicos que atuam na área, já impregna o ar.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL