Governo dá 'dica' a vinícolas do RS e tira fator surpresa de fiscalização
O Ministério do Trabalho e Emprego avisou que fiscalizará a safra de uva e a produção de vinho nas próximas quatro semanas no Rio Grande do Sul. Isso contraria as Nações Unidas e as normativas que regulam a fiscalização no Brasil para impedir que empregadores "maquiem" o ambiente de trabalho. Em 2023, 207 foram resgatados da escravidão na cadeia de três vinícolas.
"A fiscalização se estenderá até o final da safra, no final de fevereiro e serão inspecionadas vinícolas da região e produtores rurais que, nesta época do ano, empregam mão de obra temporária", diz a nota do site do ministério divulgada nesta terça (23).
Consultados em condição de anonimato pela coluna, membros do Ministério Público do Trabalho, do Ministério Público Federal, da Defensoria Pública da União e da própria Inspeção do Trabalho temem que isso configure uma "fiscalização com aviso prévio".
"A mensagem é: não seja bobo, passe um pano nas suas coisas, esconda os trabalhadores irregulares, pois estamos chegando", avaliou um deles.
Questionado pelo UOL, o Ministério do Trabalho afirmou, através de sua assessoria, que "a divulgação se limita a informar a data de início e término das fiscalizações no setor (período da safra) sem mais nenhum detalhamento, conforme pode ser verificado no release publicado no site institucional da pasta".
Também diz que a fiscalização na cadeia do vinho no estado integra o plano de ações previsto em um pacto entre empresas do setor e poder público, assinado em maio de 2023, visando à promoção do trabalho decente.
As instituições preocupadas com o comunicado do ministério fazem parte do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, responsável por verificar denúncias de trabalho escravo contemporâneo e resgatar vítimas.
Uma das razões de criação do grupo, em maio de 1995, foi exatamente garantir o efeito surpresa, impedindo que empregadores tivessem tempo de esconder as condições de exploração.
O ministério afirmou que o objetivo é verificar a existência do registro dos empregados, a utilização de equipamentos de segurança e a existência de condições dignas. Porém, a grande preocupação da sociedade é se a região ainda é palco de escravidão contemporânea.
207 resgatados
Em fevereiro de 2023, uma operação resgatou 207 pessoas que atuavam em condições de escravidão contemporânea na cadeia do vinho em Bento Gonçalves (RS). Os trabalhadores denunciaram que foram vítimas de ameaças e maus tratos, incluindo o uso de choques elétricos e spray de pimenta. Trabalhavam para uma empresa prestadora de serviço contratada pelas vinícolas Aurora, Salton e Cooperativa Garibaldi.
Recrutados na Bahia, eles já chegavam com dívidas de alimentação e transporte. No alojamento, tinham de comprar produtos a preços acima do valor de mercado. Tudo isso era anotado como dívida, o que os prendia aos patrões. Do total, 93% haviam nascido na Bahia e 95% se declararam negros.
Outro temor dos ouvidos pela coluna é de que esta fiscalização, iniciada nesta terça (23), seja usada como "prova" de que não há mais problemas no setor. Na nota, o ministério afirma que, "ao final da operação In Vino Veritas, em fevereiro, será apresentado um relatório com informações sobre o número de estabelecimentos fiscalizados e os resultados alcançados".
Soma-se a isso uma declaração dada pelo gerente regional do Ministério do Trabalho, Vanius Corte, ao portal Leouve, de Bento Gonçalves. Segundo o registro do portal, o objetivo "é tentar deixar claro que o que aconteceu no ano passado foi uma coisa pontual e episódica, que essa não é a realidade dos nossos produtores, não é a realidade das nossas vinícolas. Mas a gente só vai poder ter esse resultado fazendo essa fiscalização".
A Organização Internacional do Trabalho, que pertence às Nações Unidas, em sua convenção 81, ratificada pelo Brasil, garante que a fiscalização do trabalho ocorra sem aviso prévio.
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Quero receberTrabalho escravo contemporâneo no Brasil
O Brasil encontrou 3.190 trabalhadores em condições análogas às de escravo em 2023. O número é o maior desde os 3.765 resgatados em 2009. Foram 598 operações de fiscalização e mais de R$ 12 milhões de verbas trabalhistas pagas nos resgates, dois recordes no período de um ano, segundo dados da Coordenação-Geral de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Análogo ao de Escravizado e Tráfico de Pessoas (CGTRAE) do Ministério do Trabalho e Emprego.
Com isso, o país ultrapassou 63,4 mil trabalhadores flagrados desde a criação dos grupos especiais de fiscalização móvel, base do sistema de combate à escravidão no país, em maio de 1995. A totalização está passando por revisão e pode oscilar para cima.
A atividade de onde mais trabalhadores foram resgatados foi o cultivo de café, seguida pelo plantio de cana-de-açúcar. Mas considerando a quantidade de operações de resgate, a atividade econômica campeã foi a criação de bovinos de corte, seguida por serviços domésticos. Goiás foi o estado com o maior número de resgatados, acompanhado por Minas Gerais.
Desde a década de 1940, a legislação brasileira prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.
De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).