Caso Marielle mostra Rio preso entre a polícia que mata e a que encobre
A revelação de que o então chefe de polícia Rivaldo Barbosa foi o avalista para que matadores de aluguel executassem a vereadora Marielle Franco a serviço da milícia mostra como o Rio de Janeiro está emparedado entre uma polícia que mata e outra que acoberta seus crimes. Quem é negro, pobre e favelado tem maiores chances de perecer entre as duas.
O Estado tem registrado um aumento no número de chacinas em comunidades pobres pelas mãos de agentes de segurança nas gestões Wilson Witzel e Claudio Castro, como aquelas ocorridas no Salgueiro, na Vila Cruzeiro, no Jacarezinho. Esta última, aliás, é exemplo de como o processo de passar pano também ocorre à luz do dia.
Em 6 de maio de 2021, quando 27 moradores e um policial civil foram mortos em uma ação violenta nessa última comunidade, um delegado afirmou em coletiva à imprensa: "Não tem nenhum suspeito aqui. A gente tem criminoso, homicida e traficante". Investigador, promotor, juiz e carrasco em uma figura só. Melhor seria assumir o discurso de policial-sol e dizer "a lei sou eu".
Ao mesmo tempo, as milícias (mutação teratológica da polícia) conquista territórios, principalmente na zona oeste da capital fluminense, fazendo acordos com o narcotráfico, controlando a expansão imobiliária com a regularização de ocupações ilegais (motivo que estaria na gênese da morte de Marielle), ganhando dinheiro com as transações comerciais das comunidades, direcionando os votos dos moradores para eleger as necessidades do crime.
A investigação que levou à prisão de Domingos e Chiquinho Brazão e do próprio Rivaldo mostra o ex-chefe da área de Homicídios e posteriormente de toda Polícia Civil como um homem do crime dentro na cúpula da gestão estadual. Sua função e a de sua equipe: atrapalhar o curso de investigações, protegendo o jogo do bicho, as milícias e qualquer um que pagasse por isso.
Isso não é um desvio raro, mas a natureza de parte da política e da polícia do Rio. Todos os ex-governadores eleitos pelas urnas desde a redemocratização, em 1985, e que estão vivos, já passaram pela cadeia ou acabaram sendo afastados do cargo.
Luiz Fernando Pezão (2014-2018), Sérgio Cabral (2007-2014), Rosinha Matheus (2003-2007), Anthony Garotinho (1999-2002) e Moreira Franco (1987-1991) foram presos. Apenas Nilo Batista (1994-1995), que assumiu o cargo quando Leonel Brizola renunciou para se candidatar à Presidência da República, e Benedita da Silva (2002-2003), assumiu após Garotinho renunciar para disputar a Presidência, não foram presos, nem afastados. Mas ambos não foram eleitos como governadores, mas sim, vices, ao contrário dos demais.
O atual governador, Claudio Castro, não foi preso, nem afastado, mas já teve sigilo fiscal, bancário, telefônico e de mensagens quebrado por ordem do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em meio a uma investigação sobre corrupção.
E além de Rivaldo Barbosa, outros ex-chefes de polícia do Rio também já foram presos. Em, 2008, Álvaro Lins, por corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa. No mesmo ano, Ricardo Hallack, por corrupção, formação de quadrilha e também lavagem de dinheiro. Em 2022, Allan Trunowski por suspeita de organização criminosa e envolvimento com o jogo do bicho.
Como viver em uma sociedade em que a Polícia Militar mata e a civil acoberta, ou em que a Polícia Civil mata e a Militar acoberta ou na qual a milícia mata e as duas acobertam ou quanto milícia e polícia matam e a política acoberta?
Quando agentes de segurança passam a matar quem querem com a certeza de impunidade, temos a cristalização de uma sociedade miliciana em que as regras e normas que balizam a vida são deixadas de lado em nome do desejo do mais forte, ou melhor, do mais armado e do mais protegido.
Essa percepção de que tudo pode para quem tem um berro na cintura é compreendida pela população, que vê proliferar "homens de bem" decidindo resolver da forma como melhor entenderem os seus problemas sem a mediação da Justiça. É o cada um por si e o 38 ou a 9 milímetros sobre todos - lema de brigas de trânsito, questionamento de multas, discussões de casal.
Essa sociedade miliciana invadiu as sedes dos Três Poderes, em Brasília, como parte de uma tentativa tosca e violenta de golpe de Estado. Não queriam Justiça para o que achavam correto, queriam justiçamento, redirecionando o universo para o sentido de sua vontade com a força de suas próprias mãos.
A delação de Ronnie Lessa pode ir muito além de resolver a morte da Marielle Franco e Anderson Gomes. Como disse aqui ontem, abre a possibilidade de refundar instituições do Estado do Rio de Janeiro diante da percepção de podridão do sistema. Mas o sistema não para por conta própria, precisa ser parado.
Resta saber se a sociedade e o Estado brasileiro têm força para isso ou também já estão emparedados entre a morte e a impunidade.