Leonardo Sakamoto

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Opinião

Senado aprova racismo e chacina em votação relâmpago da PEC das Drogas 

O Senado aprovou, nesta terça (16), em duas votações na mesma noite, a proposta de emenda constitucional que criminaliza a posse de qualquer quantidade de droga e mantém na cabeça do policial e do juiz, e não na lei, o critério para separar consumidor de vendedor — decisão que, não raro, é guiada pelo racismo. Afinal, no pantone social brasileiro, branco rico é usuário, preto pobre, traficante.

Certamente houve entre os 53 senadores que votaram a favor da matéria em primeiro turno e os 52, no segundo, quem celebrasse o feito com um bom copo de álcool ou fumando seu tabaco — drogas legalizadas que causam mais mal à sociedade do que a maconha. Mas coerência não é matéria-prima para a fabricação de leis.

O avanço da PEC das Drogas ocorre no momento em que o Supremo Tribunal Federal analisa uma ação que traz critérios para separar o usuário do traficante. O próprio presidente da corte, ministro Luís Roberto Barroso, conversou com o Senado para apontar a importância dessa separação. Em meio às rusgas entre o STF e o Congresso, o diálogo virou fumaça.

Como já disse aqui um rosário de vocês, esse tipo de proposta vai na contramão do que é feito em países "atrasados", como Estados Unidos, Alemanha, Espanha e Portugal. Se a Câmara dos Deputados aprovar esse retrocesso, e deve aprovar, teremos dificuldade de reduzir o morticínio em comunidades pobres dominadas pelo tráfico e pelo racismo que trata um jovem negro com um beque como alguém a ser punido, um jovem branco com uma trouxa de droga como alguém a ser ajudado e um influenciador fitness pego na produção de toneladas de drogas como um grande injustiçado.

Hoje a lei não define uma quantidade de droga que separa o traficante do usuário. Com isso, a polícia e a Justiça passaram a enquadrar semoventes com pequena quantidade de maconha como bandidos, mandando muitos para a cadeia — quer dizer, para a escola do crime dirigida pelas narcomilícias. Com isso, o STF foi acionado. Foi o bastante para a grita daqueles que acham que a corte só pode julgar a constitucionalidade daquilo que lhes convêm.

A PEC até prevê a separação no tratamento de traficantes e de usuários (mas como vai fazer isso, ignorando o debate em curso no STF, não sei) e prevê penas alternativas, além de mandar usuários para tratamento. Dá arrepios imaginar a interpretação criativa de alguns juízes a partir disso.

No intuito de combater o crime, estamos matando milhares de pessoas todos os anos — muitas delas moradoras de áreas pobres. Ou seja, gente considerada dispensável. E, ao mesmo tempo, vamos mantendo a indústria do medo em curso e promovendo o controle de determinadas classes sociais através da justificativa de conter a violência que grassa em seu território. As mutações teratogênicas de policiais, as milícias, aprenderam com o tráfico que o controle desses locais dá muito dinheiro. Tudo isso é muito mais danoso à sociedade do que a liberação controlada e regulamentada de drogas.

Se o poder público brasileiro quisesse resolver a bomba-relógio da força das organizações criminosas e do sistema carcerário falido, descriminalizaria e legalizaria paulatinamente uma série de drogas, começando pela maconha. Isso quebraria as pernas do tráfico, reduzindo o número de jovens que hoje são enviados aos presídios para aprender a roubar e a matar e desidrataria o poder econômico das facções criminosas.

No final das contas, uma parte do Senado quis emparedar o STF, sob a justificativa de usurpação de função legislativa. Outra quis jogar ração ao seu rebanho. Há ainda o presidente da Comissão de Constituição e Justiça, Davi Alcolumbre, que estava de olho nos votos da direita em sua campanha para voltar ao comando da casa. E o presidente, Rodrigo Pacheco, que busca agradar o eleitorado conservador visando a disputa ao governo de Minas Gerais em 2026. Uma parcela de senadores do centrão quer os mesmos mimos concedidos pelo governo Lula aos deputados federais. Muitos ficaram com medo de votar contra e aparecer mal junto à população, que compra fácil esse populismo criminal. E há, claro, os que de boa vontade acreditaram que a política vai proteger vidas. Mas esses deviam ter alargado o debate em muitas audiências públicas para ouvir como os mais pobres se estrepam com isso. O trâmite, contudo, durou menos de um mês.

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Como senador não toma enquadro de blitz, todos dormiram tranquilos à noite. Quem não vai dormir bem é o mundo real.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL