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Observatório das Eleições

Rio: o espírito do bolsonarismo e os órfãos de Marcelo Freixo

Em agosto, o presidente Jair Bolsonaro e o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, participam da inauguração de uma escola cívico-militar; prefeito tenta aproximação buscando apoio para a reeleição - THIAGO RIBEIRO/AGIF/ESTADÃO CONTEÚDO
Em agosto, o presidente Jair Bolsonaro e o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, participam da inauguração de uma escola cívico-militar; prefeito tenta aproximação buscando apoio para a reeleição Imagem: THIAGO RIBEIRO/AGIF/ESTADÃO CONTEÚDO

27/10/2020 04h01

Antonio C. Alkmim*

Sinais. Foi o que apresentou a eleição de 2016 para a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, com uma nova alternativa à continuidade do prefeito Eduardo Paes (PMDB). A emergência de uma máquina política que iria sinalizar os novos tempos, com a eleição do bispo evangélico Marcelo Crivella (PRB), após uma disputa com o candidato da esquerda Marcelo Freixo (PSOL).

Crivella é diretamente ligado à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), sendo sobrinho do seu fundador, o bispo Edir Macedo. De um galpão no subúrbio inaugurado em 1977, a Universal se tornaria um complexo religioso multinacional. Filiado à igreja desde o início, Crivella torna-se missionário e cantor gospel de sucesso. Daí para a carreira política que culmina em 2016.

A força evangélica que acompanha Crivella mobiliza um contingente expressivo de adeptos. A sua proporção na cidade do Rio, como no país, é ascendente há décadas: 27,9%, segundo o Censo Demográfico do IBGE de 2010, contra 18,4% em 2000. Uma força em expansão, que convive com a diversidade de crenças peculiar da cidade que não opõe ou distingue apenas católicos e evangélicos. Há uma proporção importante dos que se declaram sem filiação religiosa (13,6% de ateus, agnósticos, ou acreditam em alguma força espiritual) e os que se filiam a outras religiões (11%).

O movimento das lideranças evangélicas criou uma máquina política e eleitoral, com uma contraprestação de atendimentos e redes de proteção, aliados à uma temática conservadora. Por outro lado, a ocupação direta de cargos públicos e de representação, seja no executivo ou legislativo.

Em 2016 a religião, dentre outros fatores (sexo, idade, escolaridade e renda) foi o mais discriminante. Cerca de 70% ou mais dos evangélicos, segundo pesquisas eleitorais, mostravam a intenção de voto estimulada em Crivella. Pelo peso dos evangélicos (um terço do eleitorado), isto justifica os 842 mil votos recebidos no primeiro turno, e 1,7 milhões no segundo.

A atual disputa, de acordo com a pesquisa do Datafolha fechada em 21 de outubro, mostra uma rejeição ao prefeito e à sua candidatura que alcança mais de 50%, inclusive com um desgaste entre os evangélicos. Essa rejeição é alta para se ganhar uma eleição ou talvez mesmo chegar ao segundo turno, o que beneficia seus adversários mais diretos.

No entanto, a religião continua a ser um diferencial distinguindo o prefeito de outros candidatos, como Eduardo Paes (DEM) e Marta Rocha (PDT) com maior apoio católico. A importância da religião é acompanhada pela idade, seguida pela escolaridade e renda. Fatores como sexo e cor não se mostram tão significativos no cenário inicial da disputa.

img1 - Elaboração própria, a partir de dados do Datafolha de 21 de outubro - Elaboração própria, a partir de dados do Datafolha de 21 de outubro
Intenção estimulada de voto e rejeição para prefeito 2020, Rio de janeiro
Imagem: Elaboração própria, a partir de dados do Datafolha de 21 de outubro
img2 - Elaboração própria, a partir de dados do Datafolha de 21 de outubro - Elaboração própria, a partir de dados do Datafolha de 21 de outubro
Intenção estimulada de voto para prefeito 2020, Rio de janeiro, segundo indicadores sociodemográficos
Imagem: Elaboração própria, a partir de dados do Datafolha de 21 de outubro

O direcionamento dos evangélicos rumo ao bolsonarismo teve a sua gênese no Rio, na comunhão entre a IURD e outras igrejas cristãs e a candidatura do candidato do PSL em 2018. Mas já em 2016 Crivella se descolou de um vínculo ideológico à esquerda.

O atual contexto remete a uma cidade mais que partida, com uma diferença estrutural, segmentada. A oposição horizontal separa em extremos a zona sul e oeste, e do mesmo jeito, verticalmente, asfalto e favela. Os indicadores sociais mudam conforme a geografia da cidade.

É o que mostra o mapa do segundo turno em 2016. Crivella junto à máquina evangélica entrou no mundo popular e ocupou este universo, pois a máquina política, em sua natureza, atende demandas concretas de sua clientela, que vão além da força simbólica e espiritual, ritualizada ou caricata dos cultos. O terreno estava pronto. Faltava à máquina evangélica a interseção com o capitão e suas múltiplas causalidades.

img3 - Elaboração própria, a partir de dados do TSE - Elaboração própria, a partir de dados do TSE
Diferença da votação entre Marcelo Crivella (PR) e Marcelo Freixo (PSOL), no segundo turno das eleições para prefeito no município do Rio de Janeiro, 2016
Imagem: Elaboração própria, a partir de dados do TSE

A eleição de Bolsonaro foi multicausal. A formação e conformação do seu eleitorado, o contexto internacional, os militares, o olavismo, o seu vínculo com as milícias, a pauta conservadora, a utilização das redes sociais, da televisão, o antipetismo. Uma eleição espetacular. A estratégia do atual prefeito, através de sua propaganda, é de potencializar o voto bolsonarista e o seu atual terço de aprovação, mais arrefecida que a do início do mandato.

img4 - Elaboração própria, a partir de dados do TSE - Elaboração própria, a partir de dados do TSE
Diferença da votação entre Jair Bolsonaro (PSOL) e Fernando Haddad (PT), no segundo turno das eleições para presidente no município do Rio de Janeiro, 2018
Imagem: Elaboração própria, a partir de dados do TSE

A conjunção entre o bolsonarismo e a máquina evangélica é superposta geograficamente, embora a votação de Bolsonaro tenha sido superior não só a de Haddad, como à de Crivella e Freixo. Agregou novos significados.

Chegamos ao ponto em que três forças estão em disputa no Rio. O favoritismo, no ponto de partida de Eduardo Paes não lhe garante. Crivella, na interseção da máquina evangélica e do bolsonarismo corre todos os riscos. E uma terceira via se viabilizou, incluindo os órfãos da desistência da candidatura do deputado Marcelo Freixo (PSOL). Um espaço sendo disputado, por duas candidatas, nesta ordem: Marta Rocha (PDT) e Benedita da Silva (PT). Ou quem sabe ainda, um oculto imponderável.

*Antonio C. Alkmim é cientista político e professor da PUC-RJ.

Esse texto foi elaborado no âmbito do projeto Observatório das Eleições de 2020, que conta com a participação de grupos de pesquisa de várias universidades brasileiras e busca contribuir com o debate público por meio de análises e divulgação de dados. Para mais informações, ver: www.observatoriodaseleicoes.com.br