Dois anos após a eleição de Bolsonaro, a desinformação tem o mesmo impacto?
Helena Martins*
Há exatos dois anos, o então deputado Jair Bolsonaro, considerado um político inoperante e do baixo clero, era eleito presidente do Brasil. Nenhum fator isolado é capaz de explicar sua eleição, mas no pacote de motivos há consenso em torno do papel da estratégia de comunicação desinformativa que utilizou e que, ainda antes do segundo turno, foi denunciada pela imprensa e por pesquisadores. Longe de pontual, aquela eleição mostrou a própria reconfiguração da política diante do crescimento da mediação pelas tecnologias e da importância das redes sociais.
O sinal vermelho foi aceso e, desde então, preocupações em relação aos possíveis impactos da desinformação em outros pleitos motivaram iniciativas por parte de agentes públicos. Um exemplo veio do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que recentemente anunciou parceria com as plataformas digitais e criação de canal sobre fatos e mentiras.
Agentes privados também apresentaram iniciativas, como o Facebook, que, além de criar uma biblioteca de anúncios dando transparência às propagandas digitais, passou a remover conteúdos desinformativos que causem violência, dano ou que comprometam processos eleitorais. A rede também proíbe a veiculação de anúncios com mensagens falsas.
O sucesso na internet reverte-se em sucesso nas intenções de voto?
A pouco mais de 15 dias do primeiro turno das eleições municipais, há dúvidas sobre o papel que as redes sociais e as estratégias de desinfomação têm exercido. Em que pese forte investimento dos candidatos em impulsionamento de conteúdos, pesquisas de intenção de votos não têm demonstrado uma correlação direta entre número de seguidores e o apoio efetivo a candidaturas.
No campo bolsonarista, embora ruidosos na internet, poucos são os candidatos nas capitais que vão bem nas sondagens. Estudo do Manchetômetro a partir de 319 páginas de prefeituráveis analisou aqueles com mensagens mais compartilhadas em diversas capitais e verificou essa diferença entre o barulho que fazem nas redes e intenções de votos.
Marcelo Crivella (Republicanos) candidato à reeleição no Rio de Janeiro, teve 8 dos 10 posts mais compartilhados, mas tem 13% de intenções de votos segundo o Datafolha, ficando em segundo lugar e tecnicamente empatado com terceiro e quarto.
Em Belo Horizonte, Bruno Engler (PRTB) faz sucesso com postagens que o associam ao presidente e usam hashtags como #Bolsonaro, #GoBolsonaro e #Bolsonaro2022, mas pontua apenas 3%.
Em São Paulo, Joice Hasselmann (PSL), que tem o maior número de seguidores e ganhou boa visibilidade com ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF) na última semana, amarga 3% de intenções de votos, segundo a última pesquisa daquele instituto. Também em São Paulo, o candidato Arthur do Val (Patriota), conhecido pelo canal do YouTube Mamãe Falei, tem quase 3 milhões de seguidores, mas registra apenas 4%.
Registrar 3% ou 4% não é pouco para candidatos que se lançaram há pouco na política, mas não reflete o alcance que possuem. O que explica esse descompasso? As redes teriam perdido importância?
Difícil sustentar tal argumento, ainda mais em tempos de pandemia, que levou as pessoas a ficarem mais tempo na internet. Mas é possível afirmar que as redes sozinhas não ganham uma eleição. Mesmo no caso de Bolsonaro, não me parece ser o caso de apontar apenas esse fator e desconsiderar outros, como a insatisfação com a política, o afastamento de seu principal adversário, Lula, a partir de movimentações do Judiciário e o desgaste construído pela mídia em relação ao PT. No caso de uma eleição municipal, pesam ainda outros fatores que estão mais próximos e podem influenciar de maneira mais decisiva na hora do voto, como as políticas das prefeituras em relação à pandemia, como já abordado neste Observatório das Eleições.
WhatsApp como principal ferramenta para desinformação
Quanto à desinformação, teriam os adeptos do bolsonarismo deixado de utilizar as estratégias que se mostraram vitoriosas na ascensão do hoje presidente? Ou elas passaram a ter menos impacto? São perguntas fundamentais na tentativa de se compreender a dinâmica de uma política cada vez mais midiatizada, mas que só serão respondidas com as urnas fechadas e os resultados conhecidos. Antes disso, algumas hipóteses podem ser lançadas.
A primeira é que não, a desinformação não está fora do jogo político. Fake news requentadas e mentiras ditas por candidatos até em frente às câmeras de TV têm sido verificadas. Mas seu impacto pode ter sido mitigado, tanto por iniciativas das plataformas quanto pela dinâmica própria das eleições municipais.
No caso do Facebook, a criação de um espaço a partir do qual é possível verificar os conteúdos veiculados pelos candidatos, assim como as proibições antes mencionadas, podem ter dificultado o uso da estratégia de desinformar. Isso, aliás, ocorreu já em 2018 no Brasil. Antes daquela eleição, muitos dos debates e propostas que objetivavam proteger o pleito foram direcionadas à tal plataforma.
O que se viu ao longo do ano foi o direcionamento de conteúdos desinformativos por meio do WhatsApp, onde candidaturas também adotaram a tática de disparos em massa, valendo-se das possibilidades de criação de grupos e da alimentação de diversos deles por alguns usuários. Importante notar que, para tanto, foi constituída uma lógica de distribuição que começa centralizada, com difusão de mensagens por parte de alguns agentes espalhados em diversos grupos, e depois ganha capilaridade com o engajamento orgânico dos participante - inclusive em grupos menores que não são claramente identificados com determinadas candidaturas, como de bairros ou serviços, o que ajuda a "furar a bolha".
A segunda hipótese é que a plataforma do WhatsApp é mais vulnerável a isso, inclusive por suas escolhas, como não uma ter política específica para combater a desinformação nas eleições. Como nas eleições passadas, segue sendo possível criar infinitos grupos e listas de transmissão. Também não houve desbaratamento das fábricas de desinformação e disparo em massa, "serviços", aliás, que continuam sendo ofertados, como mostrou a Folha de S. Paulo.
Por outro lado, desde 2018 o mensageiro tem reduzido a circulação de conteúdos altamente compartilhados, limitando o número de encaminhamentos de mensagens permitido. Também tem utilizado ferramentas de tratamento de spam e aprendizagem avançada de máquinas para retirar mensagens automatizadas em massa e banir contas de usuários com comportamentos inadequados, a exemplo do envio de mensagens em massa e da criação de múltiplas contas. Medidas que podem dificultar o disparo em massa ou reduzir a velocidade na propagação da desinformação, ainda que não impeçam que ocorra, pois muitos dos agentes que se valem desse mecanismo utilizam sistemas que conseguem driblar esses empecilhos.
Toda essa situação e o fato de ser pouco transparente e dificilmente auditável permitem sustentar que o WhatsApp pode ser o canal preferido para quem busca desinformar. Observando o radar da agência de checagem Aos Fatos, que monitora conteúdos "de baixa qualidade" em diversas plataformas, indícios de confirmação dessa hipótese são vistos. Em uma semana de monitoramento de 272 grupos, foram coletadas 6.517 publicações sobre eleições municipais, das quais 1.143 mensagens foram rotuladas como de baixa qualidade.
A mensagem mais compartilhada diz, em caixa alta,: "VAMOS VARRER DAS PREFEITURAS E CÂMARAS MUNICIPAIS DE VEREADORES DE TODO BRASIL OS COMUNISTAS DESGRAÇADOS SAO TODOS CONTRA A FAMÍLIA, CONTRA A PROPRIEDADE PRIVADA CONTRA AOS CRISTÃO. SE VOCÊ AMA SUA FAMÍLIA E A NOSSA PÁTRIA ENTÃO VOCÊ NÃO VOTA NOS SEGUINTES PARTIDOS ABAIXO" - e segue listando 26 partidos.
A segunda em número de compartilhamentos mistura supostas fraudes na eleição e "o desmonte da farsa da peste chinesa". A terceira refere-se criticamente à discussão sobre educação e ensino de gênero. A quarta faz alusão à fraude nas urnas eletrônicas, desinformação que tem sido bastante recorrente, como já mostramos aqui. A maior parte das demais mensagens com expressivo número de compartilhamentos também faz a defesa de Bolsonaro e refere-se às eleições municipais.
Os grupos analisados são públicos, com links de acesso disponibilizados na rede por seus administradores de diversos estados. Em grupos mais fechados, saber o que acontece é mais difícil, mas denúncias de desinformação têm sido verificadas. Em Fortaleza, por exemplo, o grupo "Mercadinho do Bairro" foi utilizado para disparar mensagens contra a candidata do PT, Luizianne Lins. Na análise da Aos Fatos, quando comparada a pontuação conferida às mensagens monitoradas no WhatsApp, YouTube, Web e Twitter, o WhatsApp registra a menor nota, o que indica mais conteúdos de "baixa qualidade circulando".
Situação semelhante é verificada pelo Coar, projeto piauiense de fact-checking que recebe e analisa mensagens, além de coletá-las em dezenas de grupos de WhatsApp. Nas primeiras semanas destas eleições, de acordo com a fundadora da iniciativa, Marta Alencar, foram recebidos poucos conteúdos sobre o pleito. Ainda que o volume tenha começado a aumentar, seguem predominando menções ao cenário nacional e a temas como a vacina contra o coronavírus.
Em geral, a circulação sobre eleições tem se dado sobretudo por meio de grupos fechados no WhatsApp e no Telegram, além de em canais do YouTube. Circulam vídeos e textos, por exemplo, sobre suposta proposta do candidato Kleber Montezuma (PSDB) de implantar o "kit gay" nas unidades de ensino em Teresina. A Coar não encontrou nenhuma declaração feita por Montezuma sobre programa do tipo. Mensagens que manipulam resultados de pesquisas de intenção de voto também têm sido denunciadas e checadas.
Perspectivas para a reta final da campanha
A redução na circulação da desinformação sobre as eleições municipais leva a crer que o impacto que vimos em 2018 não será o mesmo em 2020. Em uma eleição nacional, é mais fácil unificar discursos e organizar a distribuição de mensagens em variados grupos sobre temas como o famoso "kit gay".
Em embates municipais, as dinâmicas e mesmo candidatos diversos dificultam essa operação. A fragmentação do campo da direita pode também incidir nesse cenário e levar à redução das campanhas de desinformação. O fracasso político de Bolsonaro em sua tentativa de organizar um partido para ele e sua família também pesa. Caso a Aliança tivesse sido consolidada, possivelmente a transmissão da tecnologia de organização de campanhas nas plataformas digitais teria sido facilitada.
Ainda que essas questões estejam postas, é prudente observar especialmente grupos que aparentam ser privados e segmentados e acompanhar a reta final da campanha, especialmente em cidades com cenário indefinido e que podem ser palcos do "vale tudo" eleitoral.
* Helena Martins é professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), é jornalista e doutora em Comunicação Social pela UnB, com período sanduíche no Instituto Superior de Economia e Gestão (Iseg) da Universidade de Lisboa. Editora da Revista Eptic, é pesquisadora do GT Economía política de la información, la comunicación y la cultura da Clacso e integrante do Intervozes.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.