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Reinaldo Azevedo

Glenn: denúncia ridícula é abuso de autoridade; imprensa livre é alvo real

Colunista do UOL

21/01/2020 16h57

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O procurador Wellington Divino Marques de Oliveira, que resolveu denunciar o jornalista Glenn Greewald, acusando-o de envolvimento com o hackeamento das contas de Telegram de Sergio Moro e Deltan Dallagnol, deveria juntar alguns pares que pensam como ele e criar o "Tribunal do Santo Ofício do MPF", cuja tarefa específica seria proteger os pares e, por óbvio, a inimputabilidade absoluta de Sergio Moro, o Inquisidor Geral da República. Estamos diante de um caso óbvio de abuso de autoridade. Já temos uma lei para punir as tentações totalitárias.

Divino é o mesmo procurador que resolveu denunciar Felipe Santa Cruz, presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, sob a acusação de calúnia — denúncia que foi, por óbvio, rejeitada pela Justiça. O presidente da OAB afirmou em entrevista: "[Moro] usa o cargo, aniquila a independência da Polícia Federal e ainda banca o chefe da quadrilha ao dizer que sabe das conversas de autoridades que não são investigadas". Um ginasiano do direito conhece a diferença entre afirmar que alguém "banca [comporta-se à moda de] o chefe de quadrilha" e "é um chefe de quadrilha". Divino fingiu não saber. Na prática, trata-se de uma ação intimidatória.

Já afirmei aqui muitas vezes que bolsões do Ministério Público Federal, em associação intelectual com Moro — associação intelectual quer dizer, senhor procurador, "identidade de valores, de conduta, de visão de mundo" —, alimentam hoje a cosmovisão da extrema-direita da extrema-direita no Brasil. É por essa razão que as milícias bolsonaristas mais radicais substituíram seu líder, seu condutor, seu guia. Não é mais Bolsonaro. O farol dos extremistas atende agora pelo nome de Sergio Moro, que já faz campanha aberta para disputar a Presidência em 2022. Basta saber ler a realidade.

A denúncia é uma soma de aberrações. O trabalho da imprensa está em risco. Se prosperasse, o que duvido, bastaria que o governo não gostasse da revelação de uma determinada informação, desconfiasse da existência de um crime qualquer em algum momento no percurso que a gerou — CRIME NÃO COMETIDO PELO JORNALISTA — e pronto: isso bastaria para quebrar sigilos de comunicação, criminalizando o trabalho da imprensa. É a ditadura Moro!

Aliás, aproveito para parabenizar o ministro pela eficiência em chegar aos hackers, depois da incursão de uma semana nos Estados Unidos. Adriano Magalhães, chefe do Escritório do Crime, o grupo miliciano envolvido na morte de Marielle Franco, continua foragido. Não há eficiência que dê conta do recado.

Que fique claro: Glenn está sendo denunciado sem nunca ter sido investigado ou indiciado. Em si, isso já constitui uma aberração. A ação agride ainda decisão do Supremo. O ministro Gilmar Mendes concedeu liminar, em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), garantindo a Glenn não ser investigado pela divulgação de informações que preservam o sigilo da fonte.

A denúncia é de tal sorte ridícula que o procurador usa como uma das supostas evidências de que Glenn instruiu os hackers um trecho que levou a Polícia Federal justamente a concluir o contrário. No caso em questão, um deles quer saber se a comunicação entre eles deve ser apagada ou não. O jornalista diz que ele próprio não tem como apagar justamente porque é preciso se proteger de uma futura acusação de conivência. Diz que a cópia das conversas ficará em lugar seguro. E opina não ver problema em que o interlocutor assim proceda. Vale dizer: Glenn tinha consciência de que havia o risco de tentarem criminalizar o trabalho da imprensa — como está acontecendo. Segue o trecho:

GLENN GREENWALD: Entendi. Então, nós temo... é... vou explicar, como jornalistas, e obviamente eu preciso tomar cuidado como com tudo o que estou falando sobre "essa assunto", como jornalistas, nós temos uma obrigação ética para "co-dizer" (?) nossa fonte.

MOLIÇÃO: Sim.

GLENN GREENWALD: Isso é nossa obrigação. Então, nós não podemos fazer nada que pode criar um risco que eles podem descobrir "o identidade" de nossa fonte. Então, para gente, nós vamos... como eu disse não podemos apagar todas as conversas porque precisamos manter, mas vamos ter uma cópia num lugar muito seguro... se precisarmos. Pra vocês, nós já salvamos todos, nós já recebemos todos. Eu acho que não tem nenhum propósito, nenhum motivo para vocês manter nada, entendeu?

Ficou claro? Não se trata de eliminação nenhuma de "prova". Tanto é assim que Glenn toma a precaução de avisar que manterá a conversa arquivada justamente para que fique claro que, na relação com os interlocutores, não houve crime nenhum.

Duvido que a estrovenga prospere. Caso a denúncia seja aceita em primeira instância, o destino final seria o Supremo porque se trata da violação de garantias asseguradas pela Constituição.

É curioso que, até agora, ninguém tenha se disposto a pedir uma perícia nos diálogos que vieram a público entre Moro e os procuradores e entre os próprios membros da força-tarefa, revelando um conjunto impressionante de agressões à ordem legal: à Constituição, à Lei de Delações (12.850), à Lei Orgânica da Magistratura e à Lei Orgânica do Ministério Público.

Igualmente não se propôs nenhuma investigação para apurar os vazamentos criminosos de investigações sigilosas.

Divino deve saber que a sua acusação não dará em nada. O objetivo, parece, é, mais uma vez, a intimidação. Nesse caso, o alvo é a imprensa independente. A única que lhes serve é aquela amestrada pela força-tarefa e por Sergio Moro.

Chegou a hora da estreia da nova lei que pune abuso de autoridade.