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Reinaldo Azevedo

Que Bebianno descanse em paz! Legado que deixa é detestável e indesculpável

Gustavo Bebianno, ex-ministro da Secretaria-Geral da Presidência. Foi o bolsonarismo que rompeu com ele, não ele com bolsonarismo. Sua alma merece descansado, mas sua obra não merece perdão segundo os critérios da democracia - Foto: Fátima Meira/Agência Estado
Gustavo Bebianno, ex-ministro da Secretaria-Geral da Presidência. Foi o bolsonarismo que rompeu com ele, não ele com bolsonarismo. Sua alma merece descansado, mas sua obra não merece perdão segundo os critérios da democracia Imagem: Foto: Fátima Meira/Agência Estado

Colunista do UOL

14/03/2020 22h28

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Falemos, então, um pouco sobre a obra de Gustavo Bebianno, que morreu de infarto na madrugada deste sábado.

Tão logo tomei conhecimento de sua existência, em 2017, achei seu pensamento e sua militância detestáveis. E não mudei de ideia mesmo depois de ele ter sido defenestrado do governo Bolsonaro. Não caiu, é claro!, em razão do laranjal que o PSL cultivou durante a eleição de 2018, denunciado, com fartas evidências documentais e testemunhais, pela Folha. Fosse assim, Marcelo Álvaro Antônio não seria ministro do Turismo, pasta que tem Ronaldinho Gaúcho como "embaixador" — é aquele que, no momento, brilha na artilharia nos jogos de um presídio no Paraguai.

Ninguém sabe direito por que Bebianno caiu. As explicações variam de Freud (Carluxo, o filho que pretende ser pai do pai) a loucuras mais comezinhas: Jair Bolsonaro desconfiava que seu subordinado buscava estabelecer diálogo com o que ele chama "mídia podre" à sua revelia.

Poder-se-ia dizer que o ex-ministro leva consigo alguns arcanos. À jornalista Thaís Oyama, Bebianno chegou a dizer, no entanto, que guardava segredos da campanha em local seguro dentro e fora do país, expressando o temor de que pudesse ser morto. Expôs os motivos: o "capitão" mantém vínculos muito próximos com policiais bons, mas também com os maus. O tempo dirá se um dos prováveis fantasmas se agiganta e vem assombrar os Bolsonaros — como se outros não houvesse, não é mesmo?, e disso deve saber a alma inquieta do miliciano Adriano da Nóbrega Magalhães. Não há remédio para certo tipo de insônia, presidente. Adiante.

Não gosto do governo Bolsonaro. Eu o considero incompetente, mistificador e reacionário. Adicionalmente, corrompe o liberalismo. Certa malta ousa chamar liberal o, vá lá, ideário que aí está, o que é um despropósito. Obviamente, não vou aqui evidenciar que, de liberal, o presidente não tem nem a camiseta do Palmeiras, que é pirata. O próprio Paulo Guedes se mostra a fina flor do reacionarismo, mas com alguma teoria econômica. Não vou agora me ater a isso.

Lembro essa questão para destacar que o fato de Bebianno ter sido chutado de um governo que acho detestável não o transformou, a meus olhos, num interlocutor que tivesse algo de útil, esclarecedor ou iluminado a dizer. Alguns tucanos devem achar isso, tanto é que seria ele o candidato do PSDB à Prefeitura do Rio.

Para mim, seguia sendo o obscurantista de sempre, apesar daquele sotaque inconfundível dos que brilham no mundo do Jiu-jitsu. Tal inflexão de linguagem mereceria, aliás, uma investigação científica. Por que não existem lutadores com sotaque de Piracicaba ou de Dois Córregos? Mas por que escrevo "apesar" e não "por causa"? Não sou preconceituoso e aposto na possibilidade de que existam lutadores com algo a dizer sobre política.

COMÍCIO NO CAOS
Mesmo fora do governo, com algum estoque a disparar contra o governo Bolsonaro, não conseguia me esquecer do militante bolsonarista que fez discurso num piquete durante a greve dos caminhoneiros que parou o país em 2018, entre os dias 21 e 30 de maio. Como não flerto com a bagunça, pedi, não me arrependo -- e pediria outra vez --, que as Forças Armadas fossem acionadas, de acordo com o que dispõe o Artigo 142 da Constituição, com o enquadramento dos baderneiros na Lei de Segurança Nacional.

Reconheço, no entanto, a dificuldade, então, para fazer valer a Constituição e a lei. Fui o primeiro, aqui e no programa "O É da Coisa", a dizer o óbvio: aquela era uma greve conduzida já pelas franjas militantes do bolsonarismo. Cinco meses antes da eleição, o "capitão" que falava em nome da ordem promovia o caos, emprestando seu apoio incondicional ao movimento, depois de vociferar contra a... reforma da Previdência.

Bebianno era o escolhido para coordenar a marcha obscurantista do bolsonarismo. E coordenou. Fez-se presidente "ad hoc" de um partido, num arranjo tão esdrúxulo como inédito, e foi um dos esteios do impressionante manancial de boçalidades da campanha.

Em entrevista à Folha em 16 de outubro, já depois da vitória, afirmou:
"Existe muita gente que se chegou para o nosso lado porque identificou no Jair a maior liderança política da atualidade. Um homem sozinho, sem dinheiro, com partido pequeno, sem acertos com outros partidos, sem apoio de empresários, sem nada. Ele sozinho fez 52 deputados federais. Obviamente depois para governar você precisa aprovar as medidas. Mas você não verá o tipo de negociação que você estabeleceu nos últimos anos. O que vai haver são pautas temáticas, pautas regionais. Então será um tipo diferente, será uma negociação saudável em benefício do país, e não aquele toma lá dá cá."

Bolsonaro ser "a maior liderança política da atualidade", obviamente, era mero juízo subjetivo — incontestável, pois. O resto — como constatam agora os empiristas da burrice e já sabiam os que viam a política como ciência — era só um compromisso antecipado como o desastre. Que está em curso.

NÃO VI
Não vi Bebianno buscar a remissão de seus enganos. Havia o homem ressentido, que não sabia direito por que tinha sido apeado do poder, e que guardava a mágoa, compreensível, de quem havia sido miseravelmente traído por um amigo. Com efeito, não é um bom sentimento. Mas isso não fazia dele um interlocutor esclarecido para iluminar a desordem.

Repudio o esforço de certas almas intelectualmente malandras que tentam evidenciar que o governo Bolsonaro é incompetente, mistificador e reacionário porque se desviou do rumo original. Trata-se da mais escandalosa mentira; trata-se, e tratar-se-á sempre, de um esforço para submeter a própria biografia adesista a uma revisão, escoimando-a de seus pecados.

Nem a amigos concedo essa graça, sob o risco, e irei lamentar, de se tornarem ex-amigos. Eu os aceito com seus erros e pecados, como me aceitam com os meus. E sou leal. Sempre fui. É do meu caráter. Mas dispenso a hipocrisia ou a burrice.

Ninguém com um mínimo de informação tinha o direito de se enganar com o "capitão" candidato. A exemplo da Capitu de Machado de Assis (com o devido perdão a Machado e Capitu), não havia como duvidar de que o Bolsonaro da Praia da Glória já estava dentro do de Mata-cavalos.

Ou por outra: o Bolsonaro do Palácio do Planalto seria aquele mesmo que estava no Bolsonaro do Vivendas da Barra, posando abraçado a Elcio Queiroz, um dos assassinos de Marielle. Não cabe alegar surpresa. Tampouco se aceita a desculpa de que, contra o PT, afinal, valia qualquer coisa. Até porque esses mesmos sempre repudiaram a tese petista de que, contra os reacionários e a desigualdade, valia qualquer coisa.

O vale-tudo não é um esporte aceitável no ringue da política. Que a alma de Bebianno descanse em paz. E minhas orações sempre contemplam as almas todas. Mas o fato é que não me interessei por seu pensamento sem abjurações depois de expulso do Planalto. Também não acho que deixe um legado na vida pública. Ou deixa: um mau legado.

Colaborou para que gente como Carla Zambelli chegasse à Câmara, aquela que não hesita em recorrer ao Twitter para celebrar a sua morte, vendo nela o justo castigo divino. Duvido que ela própria acredite nisso. Mas essa mercancia de valores trevosos é útil à sua carreira.