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Reinaldo Azevedo

Regina banaliza a morte e naturaliza a tortura. Agora, sim, ela é um deles!

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Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

08/05/2020 07h18

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Aqui e ali, a ex-atriz Regina Duarte é tratada com uma tolerância reservada a poucos no governo Bolsonaro. A seu modo e por razões diversas, o mesmo se dava, ou se dá ainda, com Sergio Moro. Até Paulo Guedes pode entrar nesse grupo. Vamos ver.

Costuma-se pensar que Regina é apenas uma atriz equivocada, que fez uma escolha errada. Ou, então, que está sob a influência de pessoas e militantes de direita - seu filho, por exemplo -, de sorte que ela nem saberia direito o que está fazendo.

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Artistas, quando exibem uma marca ideológica muito forte, raramente têm a formação e a informação correspondentes à visibilidade política que a fama, conquistada em outras áreas, lhes dá. Não podem ser recriminados por isso. Seu trabalho principal não é a militância. Há, sim, exceções. Mas exceções são.

Será assim com Regina Duarte? Dado seu discurso de posse, houve até quem suspeitasse de certos traços de natureza clínica, que o olhar de um psiquiatra treinado poderia identificar. Desconfiei dessa leitura quando percebi que se tratava de um plágio de uma fala de personagem que ela representou no teatro. Adaptou um trecho da peça "O Santo Inquérito", de Dias Gomes, em que ela encarnou a protagonista Branca Dias. Escrevi a respeito à época. Transformava um libelo contra a violência e a tirania num rito para a sua nova condição: a de servidora de um governo fascistoide.

Se havia ali um grão de loucura, não se tratava daquela que pode ter seus efeitos minorados com a administração de drogas prescritas pela psiquiatria. A distorção que Regina exibe é de um outro tipo. Para ela, não existe nem remédio nem cura. Trata-se de uma falha de caráter.

Ela não é nem louca, nem burra nem desinformada. É tão asquerosamente reacionária e truculenta como qualquer outro dos capachos de Bolsonaro, em especial aquelas pessoas escolhidas para fazer o que eles consideram ser uma "guerra cultural". Não merece tratamento mais tolerante ou ameno do que o dispensado aos delinquentes intelectuais que servem o governo, como Abraham Weintraub, por exemplo.

ENTREVISTA À CNN
A fala da ex-atri8z em entrevista à CNN nesta quinta é coisa séria e grave. Não se limitou a fazer a defesa de uma visão reacionária e excludente de cultura, que é, admitamos, o que se espera dela. Tivesse se entregado às digressões e insultos à inteligência, habituais nesse governo, vá lá.

Não seria surpreendente se acusasse a cultura de estar contaminada pela "ideologia de gênero" e os artistas de agentes involuntários do marxismo cultural, todos eles como zumbis da conspiração gramsciana que ameaça destruir nossos valores para que os comunistas, finalmente, dominem o mundo.... A grotesca senhora foi além. Muito além.

Regina defendeu a ditadura e justificou a tortura. Fez pouco caso dos mortos da Covid-19. Insultou aqueles que sofrem. Lidou com a morte com a desfaçatez e a sem-cerimônia de um torturador. Só não é uma militante fascista porque o fascismo, propriamente, não existe. Mas é uma fascistoide. Houvesse um golpe de extrema-direita no país, ela estaria com os golpistas. As palavras fazem sentido.

PAUSA PARA MORO E GUEDES
Antes que avance com Regina, umas poucas palavras sobre a tolerância que havia com Moro e que há ainda com Paulo Guedes. O primeiro alegava ter uma causa, que independeria de quem estivesse no governo, daí que tenha se juntado a Bolsonaro: o combate à corrupção. Assim, ele estaria livre do lixo autoritário e reacionário, buscando fazer o bem em meio ao mal. Mentira! Moro condescendeu com todos os arroubos autoritários do chefe enquanto esteve no poder e, em alguns casos, chegou a lutar por coisas ainda piores, como quando se opôs ao juiz de garantias.

Quanto a Guedes, é fácil perceber que sua agenda seduz setores influentes da imprensa, que costumam não dar bola para seu reacionarismo delirante, que nada deve ao de Bolsonaro. Vimos isso na "Marcha dos Insensatos ao Supremo". Sob o pretexto de que não se pode matar o doente com o remédio, o ministro ignorou o caos provocado pelo vírus, especialmente entre os pobres, e cobrou a reabertura da economia. Por quê? Ora, ele também tem uma causa. Assim, o reacionarismo estúpido da dupla fica sob o manto de seus supostos nobres propósitos.

VOLTANDO COM REGINA
Em entrevista a Daniel Adjuto, Regina Duarte agitou os braços e começou a cantar a música que virou símbolo da Copa de 70:
-- De repente, é aquela corrente pra frente... Não era bom quando a gente cantava isso?

Falava rindo, usando os seus cacoetes de ex-atriz para justificar a ditadura do passado e a truculência do governo no presente. O repórter objetou com timidez:
-- É que foi um período muito difícil, né? Tem muita história. Muita gente morreu na ditadura, né? Essa é a questão, enfim..."
Regina não se deu por achada. Respondeu, sempre rindo:
-- Cara, desculpe! Eu vou falar uma coisa assim: na humanidade, não para de morrer. Se você falar vida, do lado, tem morte. Por que as pessoas ô, ô, oh...? Por quê?
O repórter respondeu:
-- Porque houve tortura, secretária.
Ela interrompeu:
-- om, sempre houve tortura...
O jornalista ainda tentou:
-- Houve censura à cultura...
Ela julgou ter a resposta na ponta da língua:
-- Meu Deus do Céu! Stálin... Quantas mortes!

Não há nada de ingênuo na sua fala. Esta não é fruto de seu despreparo intelectual. Muto pelo contrário. Há cultivo aí. A senhora Regina Duarte, a exemplo de seu chefe, estava justificando a tortura, condescendendo com ela, tratando a morte como coisa irrelevante. E nem se dava conta, porque aí a sua ignorância mergulha no abismo da estupidez, que não estava criticando Stálin, mas justificando-o. Aliás, a sua fala endossa Hitler, Pol Pot, o genocídio armênio, qualquer outro ato facinoroso.

O que ela diz reflete a qualidade do debate nos círculos da extrema-direita brasileira. Não se trata de vencer os adversários só pelo voto e de conquistar espaço exercitando, então, valores maiores, mais elevados, mais humanistas, mais tolerantes, sei lá... Não! Trata-se de eliminar o inimigo.

Obviamente, num governo que tivesse um tantinho de respeito até por si mesmo, seria sumariamente demitida. Mas não! Nesta quinta, Regina Duarte viveu o seu dia de heroína do bolsonarismo. Ele foi falar com o presidente para tentar se segurar no cargo.

Por que mesmo nos escandalizamos quando Bolsonaro nomeou e demitiu duas vezes o tal Dante Mantovani para a Funarte? Porque ele acha que o rock leva às drogas, que leva ao sexo, que leva ao aborto e que abre as portas para o satanismo? Bem, não o vi justificar a tortura ao menos nem tratar os mortos como se fossem lixo do qual devemos nos livrar, como fez Regina. Mais culto do que ela, não duvido, ele certamente é. Perto de Regina Duarte, o terraplanista Mantovani é um cruzamento de Kant com Schopenhauer. Olhem em que buraco o país se meteu.

O SURTO
A ex-atriz entrou mesmo em surto quando lhe foi dirigida uma questão formulada pela atriz Maitê Proença, uma das poucas vozes do meio artístico que recomendaram prudência quando Regina foi nomeada, afirmando, então, que esta tinha o direito de fazer suas escolhas e que talvez pudesse fazer um bom trabalho etc.

Maitê criticou o silêncio da secretária diante da morte recente de alguns aristas consagrados da cultura brasileira e lhe recomendou que ouvisse mais sua classe, cobrando medidas concretas na área.

Antes mesmo de a fala de Maitê entrar no ar, Regina acusou o "baixo nível"... Sabem como é. Acostumada aos meios bolsonaristas, amiga pessoal da deputada Carla Zambelli, a secretária só suporta debate de elevado nível intelectual. Ela nem ouviu a pergunta. Tirou o fone do ouvido e certamente armou um salseiro nos bastidores, que não chegou aos telespectadores. Quando estava no ar, indagou.

- Vai estar desenterrando a mensagem da Maitê pra quê? O que você ganha com isso?

Do estúdio, a jornalista Daniela Lima explicou:
-- Porque é a sua classe...

Evidenciando que está bem treinada para integrar as milícias bolsonaristas, respondeu a secretária:
-- Quem é você, que está desenterrando uma fala da Maitê de dois meses atrás? Desculpe, hein!

Daniela informou:
-- Não, não, ela enviou para a gente hoje.

Daniel Adjuto, o entrevistador, tentou contornar a situação, pressionado por Regina e certamente por assessores:
-- Ela não quer responder.

Uma dica a Daniel: não há fonte ou entrevistado que mereça o esforço de você responder por eles, em lugar deles. Ela que dissesse: Não quero responder".

E Regina, então, engatou um discurso sinistro:
-- Eu tinha tanta coisa bacana pra falar... Vocês estão desenterrando mortos. Vocês estão carregando um cemitério nas costas. Vocês devem estar cansados. Fiquem leves...

Com firmeza e com a devida dignidade profissional, sem perder a objetividade, Daniela afirmou:
-- Secretária, o país perdeu 615 pessoas com covid-19, dentre eles, alguns artistas...

Adjuto tentou cortar a palavra da sua colega de estúdio, no que fez muito mal. Talvez tentasse preservar a simpatia da fonte e do seu staff, que protestava nos bastidores. Daniela não se intimidou:
-- Daniel, só um minutinho. Só pra eu explicar aqui: o vídeo enviado pela Maitê Proença foi hoje. Só para deixar claro aqui: nós não estamos desenterrando mortos; neste momento, nós estamos enterrando mortos, dentre eles, alguns dos seus colegas.

Regina falava ao mesmo tempo:
-- Quem é essa pessoa que entrou na nossa entrevista? Não é uma falta de respeito?

Do estúdio, Daniela Lima deu a deixa para o fim da entrevista:
-- Daniel Adjuto, pode ficar à vontade para encerrar a entrevista.

Uma voz masculina, em off, protestou:
-- Isso é uma falta de respeito!

E Regina, a indicar o tipo de entrevista a que está acostumada e que esperava que fosse feita:
-- Não foi combinado nada disso!

E Adjuto:
-- Então, secretária, eu agradeço a entrevista com a senhora, obrigado por nos atender.

E Regina:
-- Eu achei que fosse uma entrevista com você, Daniel. Começam a entrar pessoas, a desenterrar mortos, a desenterrar mortos... Gente, pelo amor de Deus!

BARBÁRIE
É preciso distinguir uma fala equivocada de um discurso que ecoa o mal absoluto, como é o caso. Reparem como Regina estabelece um paralelo, ou uma equivalência, entre dois absolutos: vida e morte. Na aparência, ela exibe o seu compromisso com a vida. Engano. Ou não trataria a morte com essa falta de solenidade. Dos que se foram, ela não quer nem a memória. Daí que tenha dado de ombros também para a tortura. A sua falta de solenidade para tratar da morte aponta o seu absoluto descompromisso com a vida.

Regina foi ao encontro de Bolsonaro e deu a entrevista que deu para se segurar no emprego. E, tudo indica, realizou o seu intento. Agora, sim, ela é definitivamente um deles.

A propósito, senhora: quem carrega muitos cemitérios nas costas é seu chefe.


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