Campanha que ecoa o nazismo, a reação do secretário e a banalização do mal
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Fábio Wajngarten, secretário de Comunicação do governo, tem menos tolerância para a crítica do que seu chefe. E também não economiza nas palavras. Vamos lá.
A Secom publicou neste fim de semana em suas redes um vídeo sobre a crise em curso. Traz, note-se, um erro grotesco de informação a respeito da letalidade da Covid-19, mas nem me atenho a isso agora. E lá se pronuncia a seguinte frase: "O trabalho, a união e a verdade nos libertará [sic]". Também o erro de gramática é evidente. Mas há um pior. Nas páginas da secretaria, só a gramática foi arrumada.
Na entrada do campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, está escrito: "Arbeit macht frei" ("O trabalho liberta"). A frase da Secom e a do campo de concentração são realidades factuais.
Quando os protestos começaram a circular nas redes, Wajngarten veio a público com a agressividade habitual:
"É impressionante: toda medida do governo é deformada para se encaixar em narrativas. Na campanha, faziam suásticas fakes; agora, se utilizam de analfabetismo funcional para interpretar errado um texto e associar o governo ao nazismo, sendo que eu, chefe da Secom, sou judeu!
Mais:
"Abomino esse tipo de ilação canalha, sobretudo nos tempos difíceis pelos quais estamos passando. Esquecem dos ensinamentos judaicos recebidos por mim e por boa parte da minha equipe, e da tradição de trabalho do povo judeu de lutar por sua liberdade econômica."
VAMOS BOTAR ORDEM NA COISA
Em primeiro lugar, ser Wajngarten judeu não o livra, por princípio, de erro em território nenhum. Inclusive no debate sobre antissemitismo. Ou existiria um "pensamento judeu" a respeito do tema. Existe? Não se acusou o governo de nazista, mas se apontou a semelhança incômoda entre as frases. E, queira o secretário ou não, ela está dada. O fato de ele ser judeu não muda nem o texto da Secom nem a inscrição de Auschwitz.
Em segundo lugar, não entendi o que pretendeu ao associar judeus à liberdade econômica. Conheço judeus de esquerda, de centro, de direita. A exemplo de qualquer outro grupo. Também os há a favor do distanciamento social, contra, mais ou menos. Existem os corintianos (a maioria, rsss), palmeirenses etc. Não sei se ele se dá conta de que tenta, ao escrever o que escreveu, colocar-se como uma espécie de representante da comunidade no governo Bolsonaro.
E isso eu posso assegurar que ele não é porque conheço, sim, judeus bolsonaristas, mas também os há que abominam as ideias e a gestão do presidente. A menos que se vá lhes cassar a condição de judeus por isso, o apreço de Wajngarten pela "liberdade econômica" não revela uma condição judaica, senão a escolha de alguns judeus, assim como a adesão ao bolsonarismo. Algum erro na minha afirmação?
Mais: que história é essa de associar, ainda que de modo oblíquo, o distanciamento ao desapreço pela liberdade econômica e pelo trabalho, e todo amalgamado à condição judaica?
Não há "ilação canalha" nenhuma. Está escrito no campo de concentração que o "trabalho liberta". E a campanha da Secom diz que "o trabalho, a união e a verdade nos libertarão". Nas várias palestras que já conferi à comunidade judaica, afirmei que não conferia nem a judeus a licença para o antissemitismo. Obviamente, a intenção não foi atacar o povo judeu. O que se tem é banalização de uma frase que era uma sentença de morte. Certo ou errado? Adiante;
SOBRE BANALIZAÇÕES
Wajngarten afirma ainda:
"Acusar injustamente de nazifascismo tira o peso do termo. Se todos são nazifascistas, ninguém é, o que muito interessa aos criminosos, que passam a ser vistos como pessoas comuns. É a isso que se prestam alguns políticos e veículos da mídia na busca por holofotes a qualquer preço".
Opa! Vamos devagar. Esse debate eu conheço bem! Mas até essa história de afirmar "se todos são fascistas, então ninguém é" também já se banalizou e tem servido para que muitos fascistoides e nazistoides se expressem na esperança de que assim não serão designados porque "se todos são, ninguém é".
Para começo de conversa, não são todos, mas alguns. É certo que não existe fascista sem fascismo ou nazista sem nazismo, mas pode haver, e há, pessoas que professam valores fascistas e nazistas: são os "fascistoides" e "nazistoides" — que agem, pois, segundo o sufixo oferecido pela língua, "à moda de" fascistas e nazistas.
Acho, por exemplo, que a banalização da morte em nome de qualquer outro valor é uma atitude fascistoide. E penso que quem age desse modo não precisa ser militante de uma causa fascista. Basta que se comporte como tal. Coloquemos o espancamento de jornalistas na equação. Os que, diante de tais comportamentos, silenciam em sinal de cumplicidade ou os justificam fascistoides são. Sejam judeus, negros, japoneses ou javaneses.
Mas, claro!, assiste razão a Wajngarten quando reclama da frequência com que se apela a campos de concentração ou ao nazismo para acusar situações reais ou supostas de violência. Seu colega de ministério, por exemplo, Ernesto Araújo, das Relações Exteriores, associou o distanciamento social a campos de concentração. Wajngarten poderia ter se lembrado dos "ensinamentos judaicos" que recebeu. Caso tenha acontecido, preferiu o silêncio.
Concorde-se ou não com o isolamento, ele existe para salvar vidas. Os campos de concentração eram uma indústria da morte. Banalização.
ROBERTO ALVIM
Houve outro momento em que se poderia esperar um protesto de Wajngarten -- não só por ser judeu, mas também. Roberto Alvim, secretário da Cultura que antecedeu "Regina Tortura Sempre Existiu Duarte", não se limitou a empregar, de forma distraída, uma inscrição de campo de concentração. Não! Ele colou uma fala de Goebbels. E ao som de Wagner. O compositor era antissemita, como sabe quem conhece a coisa, mas não tinha como ser nazista porque morreu antes de Hitler nascer. Teve, sim, sua obra instrumentalizada pelo nazismo.
Ora, repetir aspas de Goebbels ao som de Wagner não parece uma coincidência, não é mesmo? Wajngarten, que se calou no caso de Araújo, contemporizou e não teria visto intenção malévola na peça criminosa divulgada pelo ex-secretários de Cultura.
O secretário tem de entender que, quando um governo recita uma frase que serviu a um genocídio, a origem do secretário que cuida da área é o que menos importante. A disposição subjetiva é igualmente irrelevante. A quase totalidade dos judeus que conheço, pouco importa a ideologia, sentiu-se enojada. E os que não são judeus e compartilham os valores da civilização democrática também.
A propósito: se o secretário de Comunicação tivesse origem alemã ou islâmica, como seria lida a coisa? Convenham: não se pode usar o "ser judeu" para, voltemos à palavra, banalizar uma frase que era uma sentença de morte a judeus porque judeus. Ofende a condição humana.
Não se trata, secretário, de banalizar a acusação de nazismo ou de antissemitismo. Trata-se de não banalizar o mal. Não fosse assim, diante de uma agressão ao pacto civilizatório, teríamos sempre de indagar antes de protestar: "Qual é a sua origem?"