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Reinaldo Azevedo

Celso e a liberdade de expressão como caminho livre para abusos e crimes

Deltan Dallagnol: atos aberrantes protegidos por ministros do Supremo. É a trilha certa para a impunidade - Fernando Frazão/Agência Brasil
Deltan Dallagnol: atos aberrantes protegidos por ministros do Supremo. É a trilha certa para a impunidade Imagem: Fernando Frazão/Agência Brasil

Colunista do UOL

18/08/2020 08h13

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A segunda liminar concedida por Celso de Mello diz respeito a outro procedimento disciplinar, este movido pelo senador Renan Calheiros (MDB-AL). Durante a eleição da Mesa do Senado, Deltan Dallagnol, aquele que é a referência máxima da Lava Jato, deu praticamente plantão das redes sociais, fazendo campanha contra a eventual escolha do senador.

Ora, ele não é um qualquer do povo. O Ministério Público detém o monopólio da ação penal. Um procurador da República conquistou, em interpretação torta da Constituição, mas consolidada, poderes também de polícia. Pode conduzir uma investigação e é quem pede que a Justiça autorize mandados de prisão, de busca e apreensão e outras medidas cautelares que restringem a liberdade.

Os senhores procuradores gozam de todas as prerrogativas garantidas à magistratura: vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade dos vencimentos. A sua liberdade de expressão, como a dos juízes, tem um limite: não podem fazer política nem se meter em porfias próprias aos Poderes da República. Há dias, o próprio Dallagnol veio a público para afirmar que uma decisão do presidente do STF, na prática, colaborava com o crime organizado.

Também nesse caso, Celso viu agressão ao devido processo legal — igualmente inexistente — , mas carregou, muito especialmente, nas tintas da defesa da liberdade de expressão. Segundo ele, toda e qualquer manifestação está garantida a um procurador, desde que não esbarre nos crimes contra a honra. É outra aberração. Para o ministro, não cometendo calúnia, injúria ou difamação, um procurador é livre para liderar quantas correntes quiser nas redes sociais, para lançar campanhas, para praticar militância política desabrida, para dizer como devem se comportar senadores, deputados, juízes e até ministros do Supremo. A república de Celso não é o reino da liberdade, mas da bagunça.

Essa liminar é ainda mais ensandecida do que a outra porque o ministro finge que procuradores são como nós. E não são. Nós não estamos sujeitos a um Código de Ética nem temos nossa prática profissional regulamentada por Lei Complementar. Eles ganham muito bem e têm garantias que presumem a sua isenção, não a sua militância política. Bem, nós já sabemos tudo o que Celso acha que um procurador pode fazer. E a Vaza Jato deixou claro que leitura alguns deles têm dessa liberdade irrestrita defendida pelo ministro. Ou os vazamentos não revelaram ações verdadeiramente criminosas?

Escreve o ministro, também com todos os grifos, itálicos e negritos:
Sabemos que a liberdade de manifestação do pensamento, revestida de essencial transitividade, destina-se a proteger qualquer pessoa cujas opiniões possam, até mesmo, conflitar com as concepções prevalecentes, em determinado momento histórico, no meio social ou na esfera de qualquer instituição, estatal ou não, impedindo que incida sobre ela, por conta e efeito de suas convicções, ainda que eventualmente minoritárias, qualquer tipo de restrição de índole política, de caráter administrativo ou de natureza jurídica, pois todos hão de ser igualmente livres para exprimir ideias, ainda que estas possam insurgir-se ou revelar-se em desconformidade frontal com a linha de pensamento dominante no âmbito da coletividade ou da corporação a que pertença o agente público.

As ideias, ninguém o desconhece, podem ser fecundas, libertadoras, transformadoras ou, até mesmo, revolucionárias, provocando mudanças, superando imobilismos e rompendo paradigmas até então estabelecidos nas formações sociais ou nas instituições estatais existentes. É por isso que se impõe construir espaços de liberdade, em tudo compatíveis com o sentido democrático que anima nossas instituições políticas, jurídicas e sociais, como o Ministério Público, p. ex., para que o pensamento jamais seja reprimido e, o que se mostra fundamental, para que as ideias possam florescer, sem indevidas restrições, em um ambiente de plena tolerância, que, longe de sufocar opiniões divergentes, legitime a instauração do dissenso e viabilize, pelo conteúdo argumentativo do discurso fundado em convicções antagônicas, a concretização de valores essenciais à configuração do Estado democrático de direito: o respeito ao pluralismo político, à tolerância e à liberdade de expressão.

O que isso tem a ver, no caso de Renan ou em outro qualquer, com um procurador da República que abusa das garantias que tem para fazer correntes na Internet?

A propósito: o que diz Celso de Mello deve valer também para um juiz? Se o que está acima é verdade absoluta e não depende da função exercida pelo indivíduo ou pelo servidor, então juízes já podem sair por aí corneteando suas opiniões.

Como? Existe uma Lei Orgânica da Magistratura? Ora, também existe uma lei que regula a atuação dos procuradores. E daí? Celso a mandou para o lixo.

O ministro vai caminhando para se despedir da corte de maneira melancólica. Esse governo Bolsonaro que ele tanto execra -- e que é execrado por qualquer pessoa sensata --, com seu regime meio militar, meio bagunça geral, é a mais dileta herança da Lava Jato, que ele poderia ter ajudado a colocar nos trilhos. Em vez disso, numa leitura torta do processo político, preferiu fazer a aposta no baguncismo.
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