Ministro usa mal Artigo 316 do CPP; e há o 312, o 315 e o 319 para agir bem
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
A mistura de barbeiragem técnica, desinformação, demagogia, imprudência, ilogismo, "policialismo" disfarçado de jornalismo investigativo e a pura e simples burrice tem, obviamente, o poder de corromper qualquer debate. A opinião bronca e a militância política tomam o lugar dos fatos. Mais: a lei que introduziu a mudança no Código de Processo Penal que está sendo demonizada também conferiu ao juiz, inclusive o do STF, condições de evitar que facínoras ganhem as ruas. O debate está errado.
A propósito: desde quando ministro do Supremo precisa do Parágrafo Único do Artigo 316 do Código de Processo Penal, a que recorreu Marco Aurélio, para soltar uma pessoa que está encarcerada, pouco importando a condição desta — se presa sem nem sequer o oferecimento da denúncia ou já condenada em segunda instância? Nunca precisou!
Aliás, mesmo na vigência da decisão tomada pelo tribunal em 2016, que passou a autorizar a execução da pena depois da condenação em segunda instância, ministros, inclusive Marco Aurélio, concederam habeas corpus. E nada os impedia. Aquela votação era de caráter autorizativo, não impositivo.
O Parágrafo Único do Artigo 316 do Código de Processo Penal é bom e prudente — à diferença do que afirmam Sergio Moro e quem lhe dá palanque — e nada tem a ver com a decisão errada do ministro Marco Aurélio, que pôs na rua André do Rap, um chefão do PCC, que, por sua vez, preferiu fugir.
Reitero: o dispositivo é bom e convida os operadores do Estado encarregados de aplicá-lo a rever periodicamente a condição não de 10, 20, 30, 50 ou 100 pessoas que comandam quadrilhas ou estão ligadas ao crime organizado. Hoje, devem passar de 260 mil os presos provisórios no Brasil — que ainda não foram condenados: quase 35%. E não! Estes, à diferença de André do Rap, não dispõem de recursos para pagar vigilantes advogados.
Vamos lembrar o que diz o tal Parágrafo Único do Artigo 316 do CPP:
"Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal."
Aí Marco Aurélio afirma:
"O juiz não renovou, o MP não cobrou, a polícia não representou para ele renovar, eu não respondo pelo ato alheio. Vamos ver quem foi que claudicou".
Sim, toda essa gente claudicou. Aliás, o Ministério Público sabia que a questão estava em curso porque a defesa do chefão do PCC já havia tentado a soltura no STJ. E teve a sua pretensão negada. Assim, pergunta-se: dada essa evidência, por que o MP não cumpriu a sua obrigação?
Marco Aurélio sabe, no entanto, que, com todas as divisões, tendências, correntes etc., o sistema judicial é um só. E um magistrado pode, dentro dos marcos legais, concorrer para corrigir eventuais falhas. O próprio Código de Processo Penal lhe faculta caminhos para não botar na rua um sujeito que, dadas as disposições do Artigo 312 de tal código, na cadeia deveria permanecer.
A LEI QUE MUDOU O CPP
Há outra coisa especialmente perversa para quem quer fazer um debate sério. A mesma Lei que introduziu o Parágrafo Único no Artigo 316 do CPP -- a 13.964 -- mudou também a redação do Artigo 315 do código. E concede ao juiz amplo espaço de manobra para "decretar, substituir ou denegar" a prisão preventiva", e qualquer decisão tem de ser "sempre motivada e fundamentada".
Com efeito, Marco Aurélio não estava obrigado a ouvir ninguém antes de tomar a sua decisão, mas podia fazê-lo. Acredito que teria bastado uma consulta ao próprio MP e ao juízo que determinou a preventiva, e isso teria resultado na sua renovação. Insisto: tal ação estaria adequada ao figurino do Artigo 312 do Código.
Um juiz não é uma máquina de tomar decisões automáticas mesmo quando cumpre o seu dever, que é o de aplicar a lei. O CPP põe ainda à disposição de Marco Aurélio, fosse o caso de tirar André do Rap da cadeia, coisa de que discordo, as medidas previstas no Artigo 319, que são ações cautelares distintas da prisão. E, entre elas, está a monitoração eletrônica.
DESCUMPRIMENTO DA LIMINAR
Aliás, Marco Aurélio poderia revogar a própria liminar, suspensa por Luiz Fux -- outra decisão absurda -- porque, em seu despacho, referindo-se ao chefão do PCC, escreveu:
"Advirtam-no da necessidade de permanecer com a residência indicada ao juízo, atendendo aos chamamentos judiciais, de informar possível transferência e de adotar a postura que se aguarda do cidadão integrado à sociedade".
Pois é... André do Rap fugiu. Sem a tornozeleira, nem foi possível mapear seus movimentos. Ele não quer ser um "cidadão integrado à sociedade", ministro. Ele é chefão de uma organização criminosa que lhe garante poder, fortuna e fama.
Que as vozes da sensatez consigam preservar da má aplicação uma boa lei, que pode concorrer para diminuir a pressão das masmorras em que se transformaram os presídios, salvando vidas e tirando da preguiça os setores do Ministério Público e do Judiciário que estocam pessoas.