Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
2022: Lula e FHC convergem no diagnóstico em favor do pacto civilizatório
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Lula admitiu, pela primeira vez de modo explícito, que será candidato à Presidência da República em 2022 em entrevista concedida à publicação francesa "Paris Match". Mas, ora vejam, uma fala de seu antecessor — FHC — tem importância ainda maior. E, antes que alguns fiquem muito bravos, convém que leiam o texto até o fim. O tucano participou de uma "live" promovida pelo IREE (Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa), que faz alguns dos melhores e mais profundos debates disponíveis na rede. Vamos ver.
Começo, claro, destacando a fala do líder petista à publicação francesa:
"Se estiver na melhor posição para ganhar as eleições e estiver com boa saúde, sim, não hesitarei [em disputar]. Penso que fui um bom presidente. Criei laços fortes com a Europa, América do Sul, África, Estados Unidos, China, Rússia. Sob meu mandato, o Brasil tornou-se um importante ator no cenário mundial, notadamente criando pontes entre a América do Sul, África e os países árabes, com o objetivo de estabelecer e fortalecer uma relação entre países do hemisfério Sul e demonstrar que o predomínio geopolítico do Norte não era imutável."
Convenham: é notícia a admissão da candidatura, mas não uma surpresa. Fiz, claro, essa indagação na entrevista que ele me concedeu no dia 1º de abril. Disse ele: "Necessariamente não preciso ser candidato a presidente da República". Eu, gentilmente, duvidei da hesitação (1h15min31s). Convenham: as circunstâncias não abrem espaço para outro nome no PT. E, por enquanto, as pesquisas também não. Quem, em lugar de Lula, depois de tudo, renunciaria à disputa? A possibilidade se coloca fora da esfera do razoável.
AGORA FHC
Na live do IREE, coordenada pelo advogado Walfrido Warde, de que participaram também o ex-ministro Raul Jungmann e a empresária Luíza Trajano, FHC afirmou que anulou seu voto em 2018, mas que a história será diferente em 2022 se o PT chegar à reta final com Bolsonaro. Com humor sempre peculiar, afirmou o tucano:
"Não sou lulista. Se tiver terceira solução, melhor. Mas ele [Lula] sente o momento. O presidente atual do Brasil não sente o momento, não sente nada. O outro [Lula] tem suficiente esperteza para sentir. Acho melhor terceira via, mas, se não houver, quem não tem cão caça com gato. E, no caso, o gato não é tão feroz, não é uma onça. É um gato pacificado, já tem experiência. A vida ensina. Pelo menos alguns aprendem. É melhor apostar."
Como se nota, FHC não acha — e, na verdade, nunca achou — que Lula seja um esquerdista perigoso, propenso a movimentos disruptivos, que coloquem em risco a democracia. É o sentido de "não é uma onça" ou de "é um gato pacificado". Deixa claro, no entanto, que, nessa prefiguração, tucanos e gatos são, obviamente, bichos distintos.
O CENTRO
FHC reconheceu as dificuldades para que surja um nome que encarne a tal terceira via. E, admita-se, está sendo apenas realista. Havendo, tende a estar com tal nome:
"Tem uma fragmentação muito grande das forças chamadas de centro. É possível? Ainda é possível. É provável? Não sei. Tenho um pouco mais de dúvidas sobre a probabilidade. Se acontecer, vou apoiar".
Mas o apoio não é incondicional:
"Tem que ser alguém que tenha uma visão mais abrangente"
Segundo o presidente de honra do PSDB, esse nome ainda sem rosto tem de "incluir, não de excluir".
FHC já havia dado declarações semelhantes e recebeu até um elogio, não muito frequente, de Lula no Twitter. O petista escreveu:
"Eu gostei da entrevista do FHC. Sempre tivemos uma disputa civilizada. Ele me conhece bem, conhece o Bolsonaro. Fico feliz que ele tenha dito que votaria em mim e eu faria o mesmo se fosse o contrário. Ele sempre foi um intelectual e sabe que não dá pra inventar uma candidatura."
O CENÁRIO
Vamos ver. Sempre que se fala em polarização e em cenário "nem-nem", tem-se como pressuposto a existência de polaridades, de dois extremos. Que Jair Bolsonaro não vá arredar pé da extrema direita, convenham, não sou eu a dizê-lo, mas ele próprio. Há menos de uma semana, estava liderando uma marcha golpista, acompanhado de alguns de seus mais destacados ministros -- inclusive Braga Netto, da Defesa.
Mas, agora, vem a pergunta de resposta óbvia: Lula é o exato oposto? O discurso do petista é de extrema esquerda? A resposta inequívoca é "não". Ao contrário: como ele sabe, porque é da natureza do jogo, que tende a quase monopolizar o eleitorado mais à esquerda, está com os olhos voltados para o centro e também para a direita democrática.
No mesmo dia em que elogiou FHC, postou outro tuíte:
"Semana passada em Brasília falei com mais de 60 políticos, de vários partidos. Semana que vem vou conversar com os movimentos sociais, intelectuais e com o movimento sindical. Quero conversar muito. Quem faz política conversa. Dono da verdade, carrancudo, não serve pra política."
E não maltratou nem o centrão:
"A imprensa nos induz ao erro quando diz que o centrão está todo com o Bolsonaro. Não tratem o centrão como um partido único. Ao apagar as luzes da Câmara dos Deputados, cada partido tem interesse no seu estado. Vamos conversar individualmente com cada partido político."
E, se querem saber, está falando a verdade. Com ou sem orçamento secreto, o centrão não é do tipo fiel ao naufrágio.
ENTENDERAM COMO É DIFÍCIL?
O tal nome do Centro é difícil não por causa dos dois extremos -- já que inexiste o de esquerda --, mas porque há um extremo só: a extrema direita bolsonarista. Lula está fazendo um discurso que não exclui ninguém, a não ser, por óbvio, Bolsonaro e sua turma de fanáticos. E os partidos ou lideranças ora cooptadas por motivos, digamos, pragmáticos não estão excluídos da "conversa". E, como diz, "quem faz política conversa".
Não por acaso, Ciro Gomes (PDT) — agora com o auxílio de João Santana, ex-marqueteiro do PT — radicaliza no discurso antilulista. Ao fazê-lo, parece, busca ser uma alternativa mais à direita do que propriamente ao centro. Parece que o pedetista parte de um pressuposto: o lugar de Lula no segundo turno está mais assegurado do que o de Bolsonaro. Não tenta dividir com o petista votos à esquerda, mas busca ser uma alternativa dos antipetistas do centro para a direita — até onde ele conseguir "endireitar" o próprio discurso.
CONCLUINDO
No fim das contas, a troca de afagos entre Lula e FHC indica que os dois, apesar de muitas divergências, convergem numa constatação: um pacto civilizatório mínimo supõe a derrota de Bolsonaro.
A suposição de que o atual presidente possa ser uma alternativa, qualquer que seja o adversário, marca um compromisso com a barbárie. Ou, o que é igualmente grave, caracteriza a indiferença diante dela.