Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Bolsonaro faz a mais intelectual e politicamente delinquente das "lives"
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Alguém meio distraído pode achar que o presidente Jair Bolsonaro diz os disparates mais asquerosos porque está com tudo, por cima da carne seca, com a popularidade em ascensão, à frente de um governo competente e valoroso. Mas é precisamente o contrário.
Porque acuado e desmoralizado, inclusive pela CPI, tem pouco a perder. E então pode dizer qualquer coisa. Toda cidade pequena tem o doido que sai pela rua a gritar as suas verdades, incompreensíveis para a maioria. À diferença de Bolsonaro, costumam ser mansos.
Nesta quinta, o presidente fez a mais intelectual e politicamente delinquente de todas as lives. Estava acompanhado do milico reformado Tarcísio de Freitas, ministro da Infraestrutura, que costuma servir de escada, com ar afetando seriedade, para os desatinos do chefe.
Constate-se: vai fazer 46 anos. Ainda é jovem. Na posição em que está, candidata-se a seguir adiante, se quiser, na iniciativa privada em posições de comando — especialmente depois de fazer a sua rede de contatos. Certamente vê como vantajosa a relação custo-benefício. Restam, claro!, as questões moral e ética. Mas não são assuntos que se devam levar ao debate nesse governo. Com ninguém. Sem exceção.
CLOROQUINA
Ao lado de Tarcísio, ambos, claro, sem máscara, Bolsonaro afirmou que teria sentido, por esses dias, mal-estar que seria típico de covid. E explicou o procedimento que adotou:
"Tomei aquele negócio para combater a malária e, no dia seguinte, estava bom. E vou dizer mais: há poucos dias, estava sentindo mal e, antes mesmo de procurar o médico, -- olha só que exemplo que eu estou dando --, eu tomei depois aquele remédio, que estava com sintoma. Tomei, fiz exame, não estava [infectado]. Mas, por precaução, tomei. Qual o problema? Eu vou esperar sentir falta de ar para procurar um hospital?".
Ele não cita os nomes "cloroquina" ou "hidroxicloroquina" para evitar que as redes sociais derrubem o vídeo por espalhar "fake news". A seu lado, nada menos do que um homem formado pelo Instituto Militar de Engenharia — área das chamadas ciências exatas. Ah, Exército Brasileiro...
O presidente do Brasil estava promovendo um remédio ineficaz no combate à covid-19 — as duas drogas nem mesmo são antivirais —, incentivando a automedicação com substância de alta toxidade sem o devido controle médico e, claro, contando uma mentira factual: ainda que tenha mesmo ingerido o remédio e melhorado em seguida, o que veio depois não é consequência do que veio antes, qualquer que fosse o seu mal.
Por que a insistência? Claro, há um cálculo político. O país ainda vive a tragédia da pandemia e pode estar às portas de uma terceira onda. Bolsonaro aposta na recuperação da economia para tentar a reeleição e defende que o país volte ao normal, ainda que essa normalidade implique milhares de mortes. Mas não é só isso.
Já está demonstrado não ser um homem de convicções. À parte a maçaroca de reacionarismos que dispara, nem sabe direito o que pensa. Não tendo um pensamento, tem, no entanto, obsessões, coisa típica de seu perfil clínico. Admitir um erro seria coisa de fracos. Então leva a farsa adiante. É claro que a Procuradoria-Geral da República deveria tomar providências. Mas nada vai acontecer. Augusto Aras está ocupado processando articulista de jornal.
ATAQUES A FHC E LULA
Senso de limite? Nunca teve! Atacou também dois antecessores: Lula e FHC. Se a eleição fosse hoje, perderia a disputa para o petista no segundo turno por 55% a 32%, aponta o Datafolha.
No dia em que circula a notícia de que Lula admitiu a candidatura em entrevista a uma revista francesa, Bolsonaro se referiu a um de seus potenciais adversários em 2022 como "ladrão de nove dedos". O ex-presidente perdeu o mindinho da mão esquerda num acidente de trabalho. Sendo quem é, Bolsonaro acha de bom tom tratar uma mutilação como se fosse um defeito de caráter — o que, obviamente, expõe o seu... caráter.
FHC também apanhou. O tucano afirmou numa entrevista de TV -- e repetiu em uma live nesta quinta -- que, num eventual segundo turno entre Bolsonaro e Lula, votaria no candidato do PT. Foi brindado pelo ogro com estas palavras gentis:
"Até teve uma passagem bastante notória naquele momento, que invadiram a fazenda do Fernando Henrique Cardoso. Esse FHC que está dizendo agora que vai votar no Lula. Olha a cara de pau. Esse cara de pau FHC dizendo que agora vai votar no Lula. Dá uma vontade de soltar um dinheirinho para o MST da região da fazenda do FHC para o pessoal invadir de novo lá, quem sabe ele aprenda".
O MST certamente não aceitaria um "dinheirinho" de Bolsonaro para organizar uma invasão. Mas fica a curiosidade: o atual presidente já recorreu aos serviços de algum grupo ou milícia na base de "soltar um dinheirinho"?
GOVERNADORES E SENADORES
Vulgaridade pouca é bobagem. Flávio Dino (PCdoB), governador do Maranhão, virou "aquele comunista gordo". Também apanharam os senadores Renan Calheiros (MDB-AL), Humberto Costa (PT-PE) e Omar Aziz (PSD-AM), membros da CPI. Formam, segundo Bolsonaro, "uma súcia".
Mas não pense que não houve elogios. Referindo-se ainda à CPI, afirmou:
"Pelo que fiquei sabendo agora, o Pazuello foi muito bem. Mas a CPI continua sendo um vexame nacional. Não querem investigar o desvio de recurso. Querem falar sobre -- não vou falar o nome aqui para não cair a live -- aquele negócio que o pessoal usa para combater a malária, e eu usei lá atrás".
Como se nota, há uma pessoa ao menos que avalia que o general teve um desempenho exemplar na comissão: Jair Bolsonaro.
CONCLUO
Para aqueles que o admiram, eis o governante corajoso, a quem nada abala. Com isso, mantém unida a, para ficar na palavra de sua predileção, "súcia" de fanáticos. Mas quem, com algum juízo, enxerga neste senhor o equilíbrio mínimo necessário para governar o país?
Havendo, há de ser alguém da mesma espécie. E merece igual confiança.
Sim, eu sei. Nunca teve, e isso já estava claro em 2018. Mas, em 2022, ele já terá um mandato de quatro anos. E vamos ver quantos milhares de mortos nas costas.
E, por óbvio, a experiência informa que não vai melhorar. Até hoje, ele só piorou.
Ah, quase esqueço. Ele encontrou tempo de elogiar um outro homem honrado:
"O ministro Ricardo Salles, um excepcional ministro, mas as dificuldades que ele tem junto a setores aparelhados do Ministério Público, os xiitas ambientais, as dificuldades são enormes".
Para lembrar:
1: o Ministério Público nada teve a ver com a ação desfechada no Meio Ambiente;
2: a investigação começou nos EUA;
3: quem conduziu a operação no Brasil foi a Polícia Federal;
4: foi a PF a pedir os mandados de busca e apreensão e as quebras de sigilo;
5: quem autorizou as medidas foi o STF, inclusive o afastamento de toda a cúpula da pasta comandada por Salles.