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Reinaldo Azevedo

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Manifesto de Seleção é fraco; STF tende, e seria um erro, a liberar torneio

Homem em Manaus carrega, em desespero, cilindro de oxigênio durante a crise que matou sufocados pacientes de Covid-19 na cidade. Poderia ilustrar com um gol de Neymar ou com a foto de um ministro do Supremo. Mas esta me parece mais eloquente, traduzindo com eficiência o que está realmente está em jogo - Foto: Bruno Kelly/Reuters
Homem em Manaus carrega, em desespero, cilindro de oxigênio durante a crise que matou sufocados pacientes de Covid-19 na cidade. Poderia ilustrar com um gol de Neymar ou com a foto de um ministro do Supremo. Mas esta me parece mais eloquente, traduzindo com eficiência o que está realmente está em jogo Imagem: Foto: Bruno Kelly/Reuters

Colunista do UOL

09/06/2021 05h18

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Saiu o tal manifesto dos jogadores, que veio a público depois da vitória da Seleção Brasileira por 2 a zero contra o Paraguai, no estádio Defensores del Chaco. Vá lá: é um avanço que atletas tenham deixado clara a sua posição contra a realização do torneio. Entre ser contra e fazer alguma coisa, no entanto, vai uma diferença. E também há modos de expressar a oposição. O texto é fraco: começa com uma generalização boboca — "Quando nasce um brasileiro, nasce um torcedor" — e termina com uma patriotada: "Somos contra a realização da Copa América, mas nunca diremos não à Seleção". Besteira. Não jogar poderia ser um jeito de dizer "sim" ao Brasil. Mas também que se compreenda. São jogadores. Estão sujeitos a várias pressões. O Supremo, sim, é livre para decidir e pode evitar, se quiser, a realização da competição em solo pátrio. Mas, tudo indica, não vai fazê-lo — e me parece um erro se assim for.

No tal manifesto, os jogadores se dizem insatisfeitos "com a condução da Copa América pela Conmebol, fosse ela tardiamente no Chile ou mesmo no Brasil" e afirmam que assim é por razões "humanitárias ou de cunho profissional". Duas reprimendas aqui: o grupo está descontente com a Conmebol, mas não com a CBF? Foi a Confederação Brasileira de Futebol que costurou o acordo, em parceria com o governo de Jair Bolsonaro. A omissão é lamentável.

Uma coisa é estar descontente com a realização da disputa "por razões profissionais" — isso é uma questão sindical. Outra é evocar "razões humanitárias". A expressão remete a questões gravíssimas, mas, no caso, assume o tom de um eufemismo. A morte de quase 500 mil pessoas requer mais do que esse drible de corpo retórico na tragédia em curso.

Há ainda a preocupação de deixar claro que não se trata de uma "discussão política". Ora, é claro que não. A CBF e o governo Bolsonaro estão fazendo política, não os jogadores. Quem encetou uma ação de caráter ideológico para derrubar Tite foi Bolsonaro. Seu porta-voz, no caso, foi Flávio, seu filho, num ataque estúpido ao técnico. A brigada palaciana se encarregou até de ajeitar com Rogério Caboclo — o monumento moral que preside a CBF, ora afastado — um treinador-do-JB: Renato Gaúcho.

Os jogadores dizem ainda se manifestar para que seus respectivos nomes não sejam relacionados a "notícias falsas", que circulam "à revelia dos fatos verdadeiros". Bem, a indústria de fake news no país tem autoria e lado, não é mesmo? Tite também falou sobre o assunto, mas de um modo rebarbativo, preferindo destacar seu lado profissional:
"Não sou hipócrita, não sou alienado e sei que as coisas acontecem. Mas sei dar prioridade. Prioridade é o meu trabalho e a dignidade do meu trabalho".

E exaltou, em seguida, os números da Seleção. No pé deste texto, segue a íntegra do tal manifesto.

SUPREMO
Nesta terça, a ministra Cármen Lúcia pediu urgência para a votação, em plenário virtual, de duas ações sob sua relatoria contra a realização da Copa América no Brasil: há uma ADPF e um Mandado de Segurança. Excepcionalmente, haverá um prazo de 24 horas para que os ministros registrem seus votos: entre a zero hora de quinta e as 23h59 do mesmo dia. Nesta quarta, registram as suas posições os respectivos advogados.

Vocês conhecem a minha posição, e tenho a impressão de que ela não vai triunfar. Infelizmente. O Artigo 6º da Constituição diz que a saúde é um direito dos brasileiros. O 196 é mais prolixo e preciso:
"Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação."

Todos os especialistas responsáveis apontam, sem exceção, que a realização do torneio no Brasil eleva "o risco de doença" em vez de reduzi-lo. Ainda que se tratasse apenas de uma relação entre privados — e isso não é verdade em razão da óbvia dimensão pública do caso —, as digitais do governo federal na atração da Copa América para o Brasil estão em todo canto. Portanto, realizá-la ou não em solo nativo atine à saúde de todos os brasileiros. Não vejo como, cumprindo o que dispõem o artigo 6º e 196, se possa permitir o evento por aqui. A comparação com outros campeonatos em curso é improcedente. Mapeiem a origem dos jogadores e vejam quantos países estarão se cruzando em campo.

De resto, como observa o infectologista Pedro Hallal — epidemiologista, professor da Escola Superior de Educação Física da Universidade Federal de Pelotas e coordenador do Epicovid-19, o maior estudo epidemiológico sobre coronavírus no Brasil —, o risco não se resume a que novas cepas entrem no Brasil. Também os jogadores que aqui vêm podem levar consigo a variante P1 do coronavírus, a dominante entre nós.

Infelizmente, tendo a achar que a maioria do Supremo vai evitar a bola dividida — coisa que, obviamente, considero um erro. E que se note: evoco razões de saúde mesmo. Nem acho que a realização do evento seja positiva para Bolsonaro. Está consolidado o contraste, que a muitos indigna: o governo é bem mais rápido no oferecimento do circo do que no de pão e vacinas... A questão é sanitária mesmo.

Nesta terça, fora da agenda, Jair Bolsonaro deu um pulinho no STF para falar com Luiz Fux, presidente do tribunal. Consta que conversaram antes ao telefone, e Fux teria feito o convite. O encontro durou 20 minutos. O que de tão sério haveria que não poderia ser dito ao telefone? A versão de que o ministro só queria pedir ao interlocutor que não indicasse ninguém para a vaga de Marco Aurélio antes da data de sua aposentadoria vale o que vale: um tostão furado.

Bolsonaro chegou ao tribunal sem máscara, que é um dos modos, apenas um, que ele tem de exercitar seu negacionismo fanático. O tribunal deveria deixar claro que o Artigo 196 é um imperativo e que a Copa América o desrespeita. Mas estou achando que não vai acontecer. E, convenham, ministros podem ser mais livres e independentes do que jovens jogadores, não?

Tudo caminha para que a competição aconteça. Na terra dos 500 mil mortos. Na terra em que se estabelece um sigilo de 100 anos sobre os motivos que levaram o comandante do Exército a não punir o subversivo general Eduardo Pazuello.
*
Leia a íntegra do manifesto:

Quando nasce um brasileiro, nasce um torcedor. E para os mais de 200 milhões de torcedores escrevemos essa carta para expor nossa opinião quanto a realização da Copa América.

Somos um grupo coeso, porém com ideias distintas. Por diversas razões, sejam elas humanitárias ou de cunho profissional, estamos insatisfeitos com a condução da Copa América pela Conmebol, fosse ela sediada tardiamente no Chile ou mesmo no Brasil.

Todos os fatos recentes nos levam a acreditar em um processo inadequado em sua realização.

É importante frisar que em nenhum momento quisemos tornar essa discussão política. Somos conscientes da importância da nossa posição, acompanhamos o que é veiculado pela e mídia estamos presentes nas redes sociais. Nos manifestamos, também, para evitar que mais notícias falsas envolvendo nossos nomes circulem à revelia dos fatos verdadeiros.

Por fim, lembramos que somos trabalhadores, profissionais do futebol. Temos uma missão a cumprir com a histórica camisa verde amarela pentacampeã do mundo. Somos contra a organização da Copa América, mas nunca diremos não à Seleção Brasileira.