Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Ação da Polícia contra editor do Intercept é intimidação e absurdo técnico
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Não ouse fazer contas sobre os mortos pela polícia. Você pode passar a ser um investigado. Também não ouse reproduzir, como na música "O que será", de Chico Buarque, o que "anda nas cabeças, anda nas bocas" ou o que "gritam nos mercados". Isso pode custar ao mensageiro a abertura de um inquérito policial.
No dia 6 de maio, a Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) da Polícia Civil do Rio resolveu fazer uma operação no Jacarezinho, no Rio. A ação resultou num número inédito de mortos: 28 — um deles é um policial. As evidências de que, quando menos, tratou-se de uma ação desastrada são gigantescas. Abundam indícios de que vítimas foram removidas dos locais em que foram alvejadas, o que dificulta o trabalho da perícia.
Leandro Demori, editor executivo do site The Intercept Brasil, escreveu um texto em que lembrou outras operações em que a Core esteve envolvida, com grande número de mortos. Lá se lê:
"Policiais que participaram do massacre de quinta-feira (...) são conhecidos à boca pequena como 'facção da Core', a Coordenadoria de Recursos Especiais. A história cresce quando juntamos outros fatos: a 'facção' está envolvida no caso João Pedro (menino de 14 anos, morto durante uma operação), na chacina do Salgueiro (oito mortos) e no caso do helicóptero da Maré (oito mortos)."
Como aponta a aritmética, estamos falando de 44 mortos em oito operações. Não custa lembrar que, no caso do Jacarezinho, a Polícia Civil tinha em mãos 21 mandados de prisão. Três foram realizadas. Três dos que estavam na lista foram mortos. Não se cumpriram, portanto, 15 deles. Mas 27 pessoas do Jacarezinho — o 28º é o policial — foram mortas. Qualquer pessoa com um mínimo de apreço aos fatos se vê obrigada a informar que, com efeito, a área é dominada pelo Comando Vermelho. A região está sob o controle dos traficantes. O texto de Demori, note-se, traz esse dado.
Agora vocês têm de prestar atenção a estas informações, extraídas de uma reportagem do G1:
Uma pesquisa inédita sobre a expansão de organizações criminosas no Rio revela que milícia e tráfico estão presentes em 96 dos 163 bairros da cidade. Nessas áreas subjugadas vivem cerca de 3,76 milhões de pessoas, do total de 6.747.815 habitantes -- segundo estima o IBGE. O estudo, batizado de Mapa dos Grupos Armados do Rio de Janeiro, identificou que milicianos controlam área maior do que traficantes de drogas na capital fluminense.
Segundo o levantamento, até o fim de 2019, as milícias dominavam 25,5% dos bairros do Rio. O percentual representa 57,5% da superfície territorial da cidade, onde vivem 33,1% dos habitantes do município - ou seja, mais de 2 milhões dos cerca de 6,74 milhões habitantes calculados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
(...)
As facções do tráfico estão presentes em mais bairros da capital: 55, contra 41 das quadrilhas de milicianos, mas com uma população menor - há cerca de 1,5 milhão de habitantes nas áreas dominadas pelos traficantes.
Vale dizer: as facções do narcotráfico e as milícias são um problema grave da cidade do Rio — e também em outras áreas do Estado. Mas a força dominante, como se pode constatar por dados técnicos, são as milícias. E, no entanto, como resta sabido, nunca se assistiu a operações como essas a que se refere Demori. Ou, então, àquela havida do Morro do Fallet em 8 de fevereiro de 2019, nos primeiros dias do governo Witzel. Nesse caso, a operação foi desfechada pela Polícia Militar. Morreram 15 pessoas — 13 estavam apinhadas em um cômodo. O Ministério Público do Rio acabou pedindo o arquivamento da investigação.
Por óbvio, não se defende aqui que a Polícia do Rio — a Core ou a Militar — mate igual número de pessoas em áreas dominadas pelas milícias para criar um sinistro equilíbrio de mortos. Uma coisa é certa: um destacamento da Polícia Civil, seja chamada ou não de "facção" no "breu das tocas", não pode ser conhecida por sua eficácia no critério letalidade. Isso seria sinônimo de incompetência, quando menos. E agora voltemos a Demori.
DE VOLTA À INVESTIGAÇÃO
A Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática instaurou inquérito contra Demori para apurar o eventual crime de calúnia cometido em postagens na Internet em que reproduz trechos do texto a que me referi acima. O depoimento está marcado para quinta-feira.
Espero que ninguém se zangue, mas o inquérito aberto pela delegada Daniela dos Santos Rebelo Pinto -- a ocorrência tem como testemunha o delegado Pablo Dacosta Sartori -- já traz uma aberração de saída. Reza o Artigo 138 do Código Penal:
"Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa."
O "alguém" indica que a calúnia é um dos chamados "crimes contra a honra" e, pois, só pessoas podem ser sujeitos passivos nesse caso. A Core, nas suas ações, pode até matar pessoas — bandidas ou não; é preciso investigar, certo? —, mas "pessoa" não é. Assim, não pode ser passível do crime de calúnia. Trata-se de um exotismo e de uma excrescência. E não é possível que os doutores não saibam disso.
Logo, faz-se de novo a pergunta: ações dessa natureza buscam apenas a intimidação?
O mesmo inquérito investiga ainda o biólogo Lucas Sá Barreto Jordão em razão de um comentário publicado no site do jornal El País sobre o mesmo episódio.
MAIS EXOTISMOS
Há outros exotismos a se destacar no caso. Sartori, que figura como testemunha da suposta calúnia -- cometido contra qual pessoa? -- é o titular da Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática. Assim, a delegada que abriu o inquérito é sua subordinada.
O doutor tem um histórico de procedimentos, vamos dizer, ruidosos. E todos dizem respeito à liberdade de expressão. Processou o youtuber Felipe Neto com base na Lei de Segurança Nacional e instaurou inquérito contra os jornalistas William Bonner e Renata Vasconcelos, do Jornal Nacional, por terem veiculado uma notícia, com base em dados colhidos pelo Ministério Público do Rio, sobre o senador Flávio Bolsonaro. O primeiro caso foi arquivado, e o segundo, trancado por decisão da Justiça. Vale dizer: não deram em nada.
E é o que deve acontecer, também, no caso de Demori e Jordão. Mas, claro!, resta o incômodo porque ações dessa natureza, empreendidas pelas autoridades, têm um custo para os indivíduos.
Temos uma lei que pune abuso de autoridade. Precisamos relê-la para saber se condutas dessa natureza estão tipificadas. Em não estando, é preciso pensar no assunto.
A propósito: se o delegado Sartori, especialista que é, sabe que uma investigação por calúnia supostamente cometido contra um órgão público não dará em nada, então por que toma essa iniciativa? Ora, justamente porque não dispõe de instrumento adequado, já este inexiste.
É preciso verificar se a simples importunação de seus alvos já o faz, a seu critério, bem-sucedido.