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Reinaldo Azevedo

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Bagunça da era Fux interfere em quebra de sigilo e perturba atuação da CPI

Luiz Fux, presidente do STF, permitiu a bagunça na distribuição dos processos; Barroso e Nunes Marques fazem interferência indevida no Legsilativo - Rosinei Coutinho/SCO/STF/Agência Brasil; Nelson Jr/SCO/STF;
Luiz Fux, presidente do STF, permitiu a bagunça na distribuição dos processos; Barroso e Nunes Marques fazem interferência indevida no Legsilativo Imagem: Rosinei Coutinho/SCO/STF/Agência Brasil; Nelson Jr/SCO/STF;

Colunista do UOL

15/06/2021 06h22

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A distribuição de processos sob a presidência de Luiz Fux virou uma grande bagunça. Obter o resultado A, B, ou C se transformou numa loteria, numa questão de sorte. E o que o menos se segue é a regra do jogo. É o que verifica no caso das quebras de sigilo telefônico e temático decididas pela CPI da Covid. Alvos das ações resolveram recorrer ao Supremo. Como o princípio da prevenção — que está presente no Regimento Interno do Tribunal, no Código de Processo Penal e no Código de Processo Civil — foi mandado para as cucuias, tudo pode acontecer. Em vez de regras e princípios, vale a sorte.

As seguintes personagens entraram com mandados de segurança no Supremo contra a quebra de sigilo:
1 - Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde;
2 - Mayra Pinheiro, secretária de Gestão do Trabalho e Educação da Saúde;
3 - Luciano Dias de Azevedo, médico anestesista da Marinha, apontado como membro do "gabinete paralelo". Segundo apurou a CPI, ele estaria envolvido na tentativa de mudança da bula da cloroquina.

Muito bem. O relator dos três mandados, Ricardo Lewandowski, negou a liminar. E fez muito bem. Já chego lá. Há outros impetrantes:
4 - Ernesto Araújo, ex-ministro das Relações Exteriores.
Nesse caso, a relatoria ficou com Alexandre de Moraes. Entendeu o ministro que inexistia razões para conceder a liminar. Está mantida a decisão da CPI.

Mas há quem tenha conseguido se dar bem no esforço de impedir a quebra do sigilo:
5 - Flávio Werneck, ex-assessor de Relações Internacionais da Saúde;
6 - Camila Giaretta, diretora de Ciência e Tecnologia da pasta;
7 - Élcio Franco, secretário-executivo da Saúde ao tempo em que Pazuello era ministro;
8 - Hélio Angotti Neto, secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos da Saúde.

Wernek e Giaretta "caíram" com Roberto Barroso, que entendeu que não estão devidamente justificados os motivos da quebra do sigilo; Franco e Angotti Neto ficaram sob o escrutínio de Nunes Marques, que seguiu na mesma linha de Barroso.

Os dois ministros, diga-se, fizeram digressões sobre a suposta impertinência da quebra do sigilo, como se estivessem acompanhando no detalhe a investigação conduzida pela CPI. Também voltarei a esse ponto.

QUATRO RELATORES, CINCO, SETE, DEZ?
Notaram? Contam-se acima quatro relatores. E só não são cinco porque Gilmar Mendes havia sido sorteado em um dos casos e abriu mão da relatoria, passando-a para Lewandowski, que deveria ter sido o relator de todos os pedidos. Perceberam? Tanto a CPI como aqueles que tiveram o sigilo quebrado não dependem de uma regra, mas da vontade do relator.

Ora, por óbvio, a solução tem de ser igual para todos, até pelo princípio da isonomia. É por essa razão que existe a prevenção — que deriva do fundamento constitucional do juiz natural.

Consta que a "área técnica" do STF — e não gosto dessas designações indefinidas, sem rosto — teria sustentado que as decisões emanadas da CPI não criam a prevenção — isto é, não são remetidas ao mesmo relator em razão da conexão. Que texto legal orienta esse troço, não sei. E duvido que alguém saiba. Eu sei, sim, o que vai nos seguintes documentos legais:

Artigo 69 do Regimento Interno do Supremo:
"A distribuição da ação ou do recurso gera prevenção para todos os processos a eles vinculados por conexão ou continência".

Artigo 83 do Código de Processo Penal:
"Verificar-se-á a competência por prevenção toda vez que, concorrendo dois ou mais juízes igualmente competentes ou com jurisdição cumulativa, um deles tiver antecedido aos outros na prática de algum ato do processo ou de medida a este relativa, ainda que anterior ao oferecimento da denúncia ou da queixa."

Artigo 58 do Código de Processo Civil:
"A reunião das ações propostas em separado far-se-á no juízo prevento, onde serão decididas simultaneamente."

Quantos mais relatores vão aparecer para cuidar dessa questão? As ações estão indo parar no gabinete de Fux e de lá saem com um relator, sei lá se definido por sorteio. O fato é que não há nenhuma razão legal para que assim seja. Todas as questões relativas à CPI da Covid e as ações de enfrentamento da doença deveriam estar sob a relatoria de Lewandowski.

AGORA AS SUSPENSÕES DAS QUEBRAS DE SIGILO
Sabem por que o Supremo mandar instalar uma CPI não é intromissão de um Poder no outro? Porque existem apenas três critérios definidos no Parágrafo 3º do Artigo 58 para que seja instalada. Eu o transcrevo inteiro porque é importante para o que vem a seguir:

§ 3º As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.

Perceberam? Quando Barroso determinou que o Senado instalasse a comissão de investigação, estava apenas cumprindo o que vai na Constituição: havendo um terço de assinaturas, fato determinado e prazo definido, não há choro nem vela. E, claro, a comissão tem de obedecer também ao que estabelece o Regimento Interno — no caso do Senado, é o 146: não pode haver CPI sobre matérias pertinentes à outra Casa Legislativa, ao Poder Judiciário e aos Estados.

Notem que a Constituição afirma que as CPIs "terão poderes de investigação próprias das autoridades judiciais". Portanto, ela assume atribuições de Poder Judiciário — e isso quer dizer que pode quebrar sigilos. A matéria também está regulado pela Lei 1.579, cujo Artigo 1º ganhou a seguinte redação com a aprovação da Lei 13.317, de 2016:

"Art. 1º As Comissões Parlamentares de Inquérito, criadas na forma do § 3º do art. 58 da Constituição Federal, terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com ampla ação nas pesquisas destinadas a apurar fato determinado e por prazo certo."

Ao impedir a CPI de quebrar sigilo de pessoas diretamente relacionadas às questões sob investigação, Barroso e Nunes Marques subtraem uma prerrogativa própria às CPIs e ao Parlamento. E não! Não é preciso, como sugeriu, por exemplo, Nunes Marques em seu despacho, que haja um indício claro de ilegalidade praticado por A ou por B. Basta que as informações a serem colhidas guardem relação direta com o objeto da CPI. E é o caso. Todas as pessoas relacionadas estavam diretamente envolvidas na política de enfrentamento à Covid, no processo de compra de vacinas e na gestão do tal "tratamento preventivo".

CONCLUO
É preciso pôr fim à desordem na distribuição dos processos que marca a gestão Fux. E é necessário que os senhores relatores não confundam, no caso, quebra de sigilo com incriminação. A CPI está apurando as raízes da política pública de saúde que já resultou em mais de 488 mil mortos. Estaríamos mais perto da verdade se boa parte dos depoentes não tivessem mentido de maneira clara, deliberada e cínica.

De resto, lembre-se o que dispõe o Parágrafo 4º do Artigo 31 da Lei de Acesso à Informação:
"§ 4º A restrição de acesso à informação relativa à vida privada, honra e imagem de pessoa não poderá ser invocada com o intuito de prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância."

Basta acompanhar a CPI no detalhe — e duvido que Nunes Marques ou Barroso o façam — para constatar que todas as pessoas que tiveram seus respectivos sigilos quebrados estavam "envolvidas" nas irregularidades havidas no enfrentamento da Covid-19. Não quer dizer que sejam culpadas. A quebra de sigilo se tornou, até em face das mentidas contadas, um instrumento fundamental para tentar chegar à verdade.

Veja também vídeo do Reinaldo Azevedo sobre o tema aqui.