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Reinaldo Azevedo

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Imperativo moral: milhares ocupam as ruas do país por impeachment e vacina

Protestos na Avenida Paulista, em São Paulo, e no Centro do Rio. Milhares de pessoas disseram "não" a Bolsonaro país afora; manifestações foram maiores do que há três semanas - Reprodução; Ricardo Moraes/Reuters
Protestos na Avenida Paulista, em São Paulo, e no Centro do Rio. Milhares de pessoas disseram "não" a Bolsonaro país afora; manifestações foram maiores do que há três semanas Imagem: Reprodução; Ricardo Moraes/Reuters

Colunista do UOL

20/06/2021 07h23

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Se apoio ou repúdio nas ruas decidissem eleições, Jair Bolsonaro poderia ir se despedindo da Presidência. Por si, não decidem, é claro! Mas são um sinal importante. Muitos milhares saíram neste sábado para protestar contra o presidente, pedir o seu impeachment, cobrar mais vacinas e elevação para R$ 600 do auxílio emergencial.

As manifestações aconteceram em 25 capitais, no Distrito Federal e em dezenas de outras cidades. Em Florianópolis, o ato foi suspenso por causa da chuva persistente. A pandemia tinha relegado a oposição às pesquisas de opinião. Mas, como se vê, não há mais condições políticas de manter a indignação represada nas casas.

Destaque-se, de imediato, que não é exatamente o mais seguro dos comportamentos do ponto de vista sanitário. O melhor mesmo é manter o distanciamento social sempre que possível. Mas é evidente que existe uma diferença brutal entre se manifestar com a intenção deliberada de desafiar os mandamentos da ciência, a exemplo do que fazem os bolsonaristas, e protestar usando máscaras. Os partidários do presidente celebram o seu comportamento irresponsável, sua política desastrosa de saúde e suas exortações filo-homicidas. Os muitos milhares que exibiram os olhos e a testa neste sábado apontavam justamente os crimes do governo.

Muitos veem a possibilidade de o presidente recuperar parte da popularidade perdida em razão do crescimento da economia e da volta do auxílio emergencial, que o governo procurará emendar com a reformulação do Bolsa Família. É possível que algo aconteça nesse sentido. Mas os percalços são grandes.

DIFICULDADES FUTURAS
À parte os rompantes populistas do presidente, geralmente incitando a truculência de alguns nichos da opinião pública, esse é um governo que entende muito pouco ou quase nada de povo. Pensem, por exemplo, nas ideias geniais de Paulo Guedes, secundado por Tereza Cristina, para responder à fome.

É bom lembrar que o embate propriamente eleitoral ainda não começou porque, por ora, os que se opõem a Bolsonaro se limitam a apontar as suas agressões a fundamentos comezinhos da civilização. Lula, Ciro, Doria ou outros ainda não confrontaram o presidente no campo propriamente das políticas públicas. Convém lembrar que Bolsonaro debateu muito pouco com seus adversários em 2018.

Afinal, a delinquência alucinada de Adélio Bispo de Oliveira quase o matou. Não o tendo matado, livrou-o do confronto com os adversários e, obviamente, colaborou para a sua eleição. Aliás, no dia seguinte à facada, Flávio Bolsonaro publicou no Twitter uma foto do pai no hospital, sedado, com o seguinte texto:
"Jair Bolsonaro está mais forte do que nunca e pronto para ser eleito Presidente do Brasil no 1° TURNO! Deus acaba de nos dar mais um sinal de que o bem vencerá o mal! Obrigado a todos que nos deram força nesse momento muito difícil! Brasil acima de tudo, Deus acima de todos!"

O que ele considerava, exatamente, obra de Deus? Deus? A motociata dos "6.661" nascia ali.

Mas voltemos. Ainda, falta, pois, o embate propriamente sobre as coisas do governo que não a saúde. A inflação de alimentos, por exemplo — em razão da ausência de políticas públicas (ou de uma política que dá uma solene banana podre para os mais pobres) —, não vai embora tão cedo. Até que o crescimento comece a ser percebido pelos deserdados do desastre sanitário e do desastre administrativo, vai um tempo. E há a crise hídrica no meio do caminho.

Neste sábado, o país atravessou o umbral pavoroso dos 500 mil mortos. Nem os críticos de Bolsonaro imaginavam desastre nessa dimensão. E, no entanto, está aí. No momento, a média de mortos e de novos doentes está em alta.

Em abril, o Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde (IHME, na sigla em inglês), da Universidade de Washington, antevia que o país poderia encerrar este mês de junho com 562.863 mortes. Gritaram: "Que exagero!" Pois é: chegamos a 500.868 neste sábado, dia 19. Há mais 11 dias a contabilizar. Quase lá. E poderia, por óbvio, ser muito pior se o país voltasse à "normalidade" pretendida por Bolsonaro — aquele que diz ter encomendado a seu ministro da Saúde um estudo para suspender o uso obrigatório de máscaras, o que, de resto, o governo federal não pode fazer.

CONTRADIÇÕES
Não! Os que foram às ruas neste sábado não estavam fazendo o que recomenda Bolsonaro. Fosse assim, estariam todos sem máscara, como fazem os admiradores do Bolsolão quando se concentram. Mas é evidente que os manifestantes contrários ao governo também não seguiam estritamente as recomendações dos epidemiologistas.

Então notem: à medida que Bolsonaro propõe o desafio das ruas — e é o que ele faz com suas mussolínicas motociatas — e à medida que parte ao menos dos que a ele se opõem topam a parada, é claro que ele perde na comparação. A concentração de motoqueiros, mostrou o pedágio, reunião de 6.661 — número também conhecido como "BESTA1" — veículos de bacanas. Imaginem se a turma que usa motocicletas para trabalhar em aplicativos de entregas, com relações de trabalho que nem sempre honram a civilização contemporânea, resolverem se concentrar para protestar... O presidente conhecerá o que de fato são muitos milhares de motos. Que razão essa moçada teria para ser bolsonarista?

Ainda que sob risco, a rua não é mais monopólio do vírus e dos bolsonaristas — e foi Bolsonaro a propor o desafio. A vacinação avança, ainda que lentamente. Mas aumenta a segurança de alguns milhares. O espaço público volta a ser ocupado pela política. E isso não é bom para o presidente.

BORBORIGMOS COMO SE FOSSEM PENSAMENTO
Carlos Bolsonaro e as milícias digitais expeliram borborigmos de indignação, apontando a suposta contradição dos opositores do presidente, que, embora críticos de sua política de saúde, saíram às ruas para protestar contra ele. Achavam-se muito espertos: "Ah, já que nossa moral nos permite incitar as pessoas a ignorar o vírus e já que a deles os proíbe de fazer o mesmo, então fiquemos com o monopólio das ruas." Pois é. Muitos dos que se opõem se sentiram desafiados. Meteram a máscara da cara e foram dizer a real ao presidente.

Por que Carlucho e seus comandados estão bravos? Eles acham que o comportamento sanitariamente correto, nas suas regras mais estritas, deve ser uma obrigação só dos adversários, enquanto o pai ataca até as vacinas em suas livres do "Findomundistão"?

PARA ENCERRAR
A conversa de que a presença de partidos políticos nos protestos tisnaria a pureza de uma manifestação realmente da sociedade etc. e tal é conversa obscurantista de gente ainda contaminada pela demonização da política. É uma urticária herdada do lavajatismo -- a causa primeira do desastre que está aí.

Os partidos que se opõem a Bolsonaro deveriam fazer o quê? Fugir de um protesto político contra Bolsonaro? É pensamento torto ou tentativa malandra de igualar os manifestantes deste sábado à turma do "6.661".

Tentar ver equivalência entre o grupo dos negacionistas e defensores do golpe e o daqueles que pedem vacina e impeachment é coisa de gente ainda mais delinquente do que o próprio bolsonarismo, que não tem vergonha de ser o que é. E, Deus do Céu!, como eles são sem-vergonhas!