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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Falácia sobre acordão une reaças e esquerdistas. Ou: Impeachment para quê?

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Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

13/09/2021 03h36

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As pessoas têm direito às próprias opiniões, mas não aos próprios fatos.

Desde que Jair Bolsonaro tornou pública a carta esboçada pelo ex-presidente Michel Temer, em que se compromete com o cumprimento das regras do jogo, o mercado da especulação política entrou em ebulição. Numa coisa, ao menos, parte considerável de analistas de esquerda e a pistolagem de extrema direita (disfarçada de crítica destemida) concordam: teria havido um grande "acordão" — e o ambiente principal em que se teria dado o dito-cujo seria o Supremo.

É preciso que especifique aqui como cada um dos lados lê o tal acordão.

A FANTASIA DA EXTREMA DIREITA VIGARISTA
Para os bolsonaristas, o presidente teria conseguido enganar, a um só tempo, Temer e o Supremo, muito especialmente Alexandre de Moraes. Assim, Bolsonaro, o siciliano de filme B, teria se transformado num sofisticado florentino. A partir de agora, os ministros começariam a tomar decisões que são do seu interesse, distensionando o processo político, e, "no Dia D e na Hora H", o "Mito" bate o porrete na mesa.

Chegam a emprestar à sua baba hidrófoba um certo ar de mistério, de quem guarda informações secretas, inacessíveis aos demais mortais. Nem sentido há na especulação porque, por óbvio, tais segredos seriam compartilhados justamente pelos magistrados do Supremo, que essa mesma canalha considera inimigos da República. Por que os membros da corte se meteriam num arranjo que, no limite, os destrói é um desses mistérios que esses vagabundos não precisam explicar.

Convenham: se essa gente falasse a um público que exige o mínimo de rigor factual e um tantinho ao menos de lógica, não teria a quem falar, certo? Lembro: os vigaristas reagiram com decepção e melancolia ao anúncio da carta. Passadas algumas horas, a tropa já havia se reunido para pedir desculpas. Estavam com a cabeça quente, sabem como é...

Mas, ora vejam, até um "analista bolsonarista" é capaz de contar uma verdade, ainda que seja um ato involuntário. De fato, o presidente não se converteu à democracia da noite para o dia. Ele julga mesmo estar ganhando tempo para tentar melar o jogo mais adiante. Sabemos que com golpe não será. Que sortilégios essa gente há de inventar? Qual será o seu "Incêndio do Reichstag" caso a derrota eleitoral se afigure certa e fatal?

Assim como Bolsonaro tentou, sim, criar, no dia 7, as circunstâncias para uma intervenção militar, parece-me certo como a luz do dia que não está disposto a engolir pacificamente uma derrota.

Qual é, pois, a grande falcatrua dos que veiculam as bocas de bueiro que lhe servem de porta-vozes? Não houve acordo de nenhuma natureza com os ministros do Supremo.

Quem faz esse tipo de previsão age como essas videntes que dizem ao consulente que um amor do passado marcou bastante sua vida, que uma pessoa que se finge amiga é, na verdade, uma invejosa tóxica e que, nos próximos meses, virá uma grande decepção... Qual a chance de errar? Ofereço essas previsões a todos os leitores. Acabo de ler a sorte de vocês no tarô...

Adivinho, ainda, que, nas decisões vindouras do Supremo, ora as pretensões do governo serão atendidas; ora não. Afinal, a menos que os ministros do tribunal passem a votar sistematicamente contra o governo para marcar posição — hipótese em que independentes não seriam —, haverá pretensões do Planalto que serão atendidas. E o vidente vigarista dirá: "Não falei?"

O OPOSTO COMBINADO
Se é intelectualmente intolerável entrar em contato com essa baba hidrófoba, chega a ser estupefaciente que penas um tantinho mais iluminadas, que se esmeram na crítica ao golpismo bolsonarista, repitam a tese do "acordão", sem que apontem, também elas, em que ele consiste e quais seriam seus termos.

Já sabemos que não vale apontar eventuais decisões favoráveis às pretensões do Planalto como evidências porque, por certo, elas existirão.

"Ah, mas Gilmar Mendes já disse em entrevista ser preciso 'acreditar na boa-fé do presidente'". Bem, esperavam que o decano do Supremo afirmasse o quê? Que há um celerado no Planalto, que pensa ser Napoleão? O ministro não é militante da oposição. Não me parece que seja alguém com receio de afrontar fantasmas e falsos consensos, não é mesmo?

Na mesma entrevista, afirmou: "Não cumprimos a meta de vacinação e estamos a praticar esse novo esporte de agressões contínuas e alguns delírios. É como se fôssemos fazer um 'happening' no dia 7 de Setembro, e, no dia 8, não haverá mais Supremo, não haverá mais Congresso, o mundo estará em outra dimensão".

O papel de fazer oposição é... das oposições. A propósito: se o Supremo assumiu o protagonismo que assumiu, isso se deve, em boa parte, ao fato de que a política não tem sabido enfrentar os arroubos autoritários do presidente. O tribunal cumpre, sim, seu papel. Não está se arvorando em ator político. Mas, nesse jogo, ele é goleiro. A linha de zaga falhou miseravelmente nesses quase três anos, não?

NÃO HÁ ACORDO NENHUM
Não há acordo nenhum. Convenham: se o impeachment precisar, para se viabilizar, que Bolsonaro tente dar golpe todo dia, então estamos lascados. As razões todas para que o presidente seja chutado do Palácio do Planalto persistem. Estamos diante do governo mais deletério da nossa história. Nunca o país recuou tanto em tudo em tão pouco tempo. Vituperar contra Michel Temer porque este conseguiu, com a tal carta, retirar o golpe de estado da agenda de curta prazo parece uma tolice.

"Ah, mas que truque teria Temer na manga, de que não dispõe Arthur Lira, o presidente da Câmara, que fica sentado sobre 130 denúncias por crime de responsabilidade e que não consegue impor moderação ao presidente?"

Vênia máxima, cumpre indagar se Lira quer a moderação de Bolsonaro — o que torna a posição do mandatário mais estável — ou prefere vê-lo a vociferar veneno, caso em que a própria atuação de Lira contra o impeachment se torna um tanto mais cara...

Sabemos o que Temer disse ter falado ao presidente, não o que ele realmente falou na conversa a sós. O ex-presidente é uma das pessoas mais educadas que conheço. E é muito objetivo quando quer. Intuo cá com meus botões que não hesitou em dizer: "Nessa rota, você vai cair". E isso Lira nunca afirmou a Bolsonaro. Ao contrário. É como se batesse no peito todos os dias: "A garantia sou eu".

O jogo de Bolsonaro contra as instituições interessa a Lira. Se Temer costurou uma carta que distensiona o ambiente, eu me arriscaria a dizer que o presidente da Câmara tem mais razões para se zangar do que aqueles que querem o impeachment. Afinal, a ele interessa manter o mandatário como seu refém, no "balança, mas não cai".

E O FUTURO?
Bolsonaro já deu início à disputa eleitoral de 2022. Neste dia 12, manifestantes foram às ruas para pedir seu impeachment. O eixo original da demanda partiu da oposição ao presidente de viés conservador, ainda que tenha contado com adesões de frações das esquerdas.

Outras manifestações virão. Tanto a disputa eleitoral já está em curso que resta evidente que não haverá atos unificados, juntando todas as correntes que se opõem a Bolsonaro. É preciso que se defina o que se quer para que se escolham os instrumentos adequados a tal objetivo.

O PT quer mesmo o impeachment? Respondo assim: não é que "desqueira", mas é preciso ser meio tonto para achar que é esse o melhor cenário para o partido. Não é. A possibilidade já seria mais interessante para os candidatos a candidato da terceira via? Igualmente é preciso ser meio leso para ignorar tal evidência.

Os petistas já deixaram claro, na sua resolução do dia 11, que o seu "Fora Bolsonaro" está condicionado a uma pauta: é preciso ser contra o presidente e contra as "reformas antipopulares". Qualquer pessoa de bom senso reconhece aí uma plataforma eleitoral.

CONCLUO
Não foi a "carta de Temer" que esfriou a pauta do impeachment. Ela apenas esfriou o cenário de golpe. Não há votos na Câmara para que se envie ao Senado a autorização para votar a abertura do processo de impedimento. Mas, antes disse, não há consenso nos interessados na derrocada de Bolsonaro de que esse seja mesmo o melhor caminho.

Há gente que parece zangada porque Bolsonaro decidiu adiar o suicídio ou porque o STF não se comporta como um tribunal de execução do presidente — de resto, ele não dispõe de instrumentos para tanto.

Se todos os que se opõem a Bolsonaro quisessem realmente o seu impeachment, definiriam tal objetivo e pronto! Quanto mais gente na luta, melhor. Mas a campanha eleitoral já está em curso. E noto: tudo isso é legitimo e faz parte da política. Não estou demonizando ninguém. Só não vale dizer que Temer apareceu para estragar a festa ou que um grande "acordão" está em curso.

Convenham: o acordo mais relevante hoje é aquele que prefere Bolsonaro como um pato manco.

Ah, para não esquecer: Bolsonaro ainda não desistiu de melar o jogo. A menos que consiga reverter o que, hoje, se afigura como o seu destino. Com golpe, não será. Mas com o quê? Isso as cartas não me disseram.