Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Azevedo e Silva no TSE era um erro; fora, é outro. E fala absurda de Fachin
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Sempre que alguém é criticado por ter cavalo e por não ter cavalo, por usar chapéu e por não usar chapéu, por tomar Chicabon e por não tomar Chicabon, o problema, claro!, não está na pessoa, mas no critério. Algum erro de análise está em curso. Qual o enigma? Vou falar sobre a decisão do general Fernando Azevedo e Silva, que desistiu de assumir a direção geral do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Jair Bolsonaro é um golpista e busca apoio militar para uma aventura desde o primeiro ano de governo. A exemplo de toda alma sebosa com espírito autocrático, percebeu que os primeiros inimigos a serem alvejados eram a Justiça e a imprensa. As manifestações contra o Supremo, o Congresso e o jornalismo independente datam do começo de 2019, com a participação, diga-se, de ditos "movimentos contra a corrupção" que hoje apoiam a candidatura de Sergio Moro.
Tanto isso é verdade que o inquérito corretamente aberto de ofício por Dias Toffoli para apurar a indústria criminosa de "fake news" contra o Supremo é de 14 de março daquele ano. O então novo governo não tinha ainda três meses, e as milícias digitais — agora sabemos que em conluio com o gabinete do ódio, instalado dentro do Palácio do Planalto — já atuavam para desmoralizar o tribunal.
Aquele que, para a estupefação do bom senso, foi guindado a chefe do Executivo e comandante supremo das Forças Armadas repudia desde sempre a democracia pela qual se elegeu. Não há segredo nisso. O passo seguinte foi começar a demonizar o sistema eleitoral. A extrema direita segue esse roteiro mundo afora.
A escalada golpista bateu num paredão. Não lhe vieram os apoios militar e popular necessários para um golpe, com o qual realmente sonhou. Ainda que condições houvesse para o "Putsch" em si, não haveria como sustentá-lo depois. Um país com as condições do Brasil — não cabem detalhes agora — não se governa "manu militari". Esse trem já passou. Isso não impede que se corroam por dentro os valores democráticos e que se instaure um regime autoritário com fachada legalista. Bolsonaro ainda não desistiu — e, quanto a esse particular, tem, sim, o apoio de setores das Forças Armadas, ainda que minoritários.
Depois do 7 de setembro do ano passado, Bolsonaro deu uma amansada no discurso. Imaginou — afinal, tem-se em altíssima conta — que, a esta altura, estaria numa situação eleitoral mais confortável. Liderasse as pesquisas e fosse considerado favorito, faria uma crítica aqui e ali às urnas eletrônicas para alimentar suas falanges e pronto! Ocorre que os números lhes são extremamente adversos. Quando casados ao que vem por aí na economia, sua reeleição se afigura bem difícil. Pior: o favorito é Lula, sua nêmesis, tornado elegível por decisão correta, legal e técnica do... Supremo, que vem a ser aquele tribunal do começo dessa história.
Então o negócio é começar tudo de novo, pondo, mais uma vez, em dúvida o sistema eleitoral, retomando a campanha que marcou quase três anos de governo. E, com a devida vênia, o TSE cometeu dois erros que nasceram na mais legítima boa-vontade, da mais clara boa intenção: ter um representante das Forças Armadas na tal da Comissão da Transparência Eleitoral e indicar Azevedo e Silva para o cargo de diretor-geral.
O movimento era compreensível e, no universo da pura racionalidade desinteressada, lógico. Se aquele que pôs em dúvida, sem motivos, o sistema de votação apela a suas origens militares e fala a um público que têm as Forças Armadas como referência de verdade, que estas tenham seus homens para atestar o sistema. E tudo está bem. Acontece que, ao se tomar tal decisão, abre-se margem para a desconfiança: "Chamou por quê? Precisam da chancela dos militares?"
Estaria tudo bem se estes a dessem e pronto. Mas isso não aconteceu exatamente. Em vez disso, o tal general Heber Portella encaminhou um questionário com perguntas sobre o sistema de votação, que Bolsonaro converteu, falsamente, em acusações de vulnerabilidade. Mas houve algo mais sério antes: no teste de segurança das urnas, o representante militar da comissão não apareceu. Qual o erro primeiro? Transferiu-se, afinal de contas, para os militares a chancela sobre o sistema. E se, por qualquer razão, o seu representante dissesse ou disser: "É vulnerável"? Pode até ser uma derrota por 10 a 1 no grupo, mas só um lado dispõe de tanques. O outro só tem teclado e caneta.
Esse erro foi coroado por outro: o convite ao general Azevedo e Silva. Não estou pondo em dúvida a sua honradez. Desconheço igualmente os motivos de sua desistência. Mas é evidente que as duas coisas acabaram se mostrando contraproducentes para os propósitos iniciais:
a: não deveria ter sido convidado porque isso sugere que só um militar pode desempenhar tal função;
b: convite aceito, não poderia ter desistido porque isso alimenta especulações de que seus pares militares não o querem endossando a higidez do sistema. Ademais, os golpistas aproveitam: "Vai ver ele não confia". Perde-se por ter chapéu e por não ter chapéu. Sugere-se uma vulnerabilidade QUE INEXISTE com Fernando ou sem Fernando.
DESINTOXICAÇÃO
O ambiente continua um tanto intoxicado, e é preciso pôr a bola no chão. Autoridades que estão na ponta do processo eleitoral precisam medir cada palavra. Nesse sentido, lamento o conteúdo de uma entrevista concedida pelo ministro Edson Fachin, que assume a presidência do TSE no dia 22. Afirmou em entrevista ao Estadão:
"A preocupação com o ciberespaço se avolumou imensamente nos últimos meses e eu posso dizer a vocês que a Justiça Eleitoral já pode estar sob ataque de hackers, não apenas de atividades de criminosos, mas também de países, tal como a Rússia, que não tem legislação adequada de controle. Porque, para garantir a liberdade, é preciso controlar quem atenta contra a liberdade. Para garantir a liberdade de expressão, é fundamental que se garanta a expressão da liberdade. Porque, senão, o discurso da liberdade é um discurso oco, é um discurso próprio do populismo autoritário. E esse é o nosso terceiro universo de preocupações, ou seja, universo que diz respeito a ter paz e segurança nas eleições."
Com todas as vênias, acho a fala impensada e irresponsável. É inaceitável que diga "a Justiça Eleitoral já pode estar sob ataque hackers". Ora, é evidente que isso abre o flanco para que se questione o resultado, porque faltou dizer, então, que tal ataque é ineficaz. Mais: esse "já pode" inexiste sem uma consequente ação da autoridade, não? Acionou a Polícia Federal, por exemplo? Qual o indício? Ou ele tem apenas uma ligeira impressão?
Em seguida, o ministro faz perorações sobre a liberdade com as quais até concordo, mas com uma certa temperatura discursiva incompatível com uma abordagem que tem de ser mais técnica em benefício de todos.
ENCERRO
Não. Não vai ter golpe -- sobretudo, jamais haveria um que fosse bem-sucedido. Mas quem disse que o golpe é o único mal que pode nos colher?
A bagunça também custa muito caro ao nosso presente e ao nosso futuro.