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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Rússia, Ucrânia, realismo e direito internacional. E um artigo de Kissinger

Henry Kissinger, o lendário, escreveu um artigo em 2014 em que defende a plena autonomia da Ucrânia, mas fora da Otan - AFP
Henry Kissinger, o lendário, escreveu um artigo em 2014 em que defende a plena autonomia da Ucrânia, mas fora da Otan Imagem: AFP

Colunista do UOL

28/02/2022 07h50

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Nesta segunda, representantes do governo da Rússia e da Ucrânia se encontram em Gomel, na Belarus, para tentar negociar um cessar-fogo. As perspectivas não parecem ser as melhores. Vladimir Putin tem contra si as regras mais comezinhas do direito internacional. Não há dúvida de que ele as violou, e uma tempestade desabou sobre sua cabeça. Por mais que tenha antevisto os riscos e se antecipado a possíveis reações, pode ser que tenha calculado mal a dimensão. Talvez esteja decepcionado e surpreso, tanto é que já falou em dissuasão nuclear. Ele o fez cedo demais, o que não quer dizer, por óbvio, que inexista o risco.

Os Estados Unidos, que arrastam consigo a União Europeia — não há mais Angela Merkel, e Emmanuel Macron se apequenou com impressionante rapidez — estão dispostos a quebrar a espinha de Putin a, literalmente, qualquer custo. O esforço para isolar economicamente a Rússia, tomando-lhe, inclusive, parte das reservas internacionais, é uma catástrofe para o país, mas gera também instabilidade no mundo, que mal saiu do desastre provocado pela Covid-19. É evidente que não se pode deixar Putin invadir territórios alheios à sua vontade, mas o congelamento de reservas não deixa de ser uma forma de invasão e representa, igualmente, uma óbvia agressão ao direito internacional.

SANÇÕES E CONSEQUÊNCIAS
EUA e aliados decidiram enviar armas de ataque e caças à Ucrânia, que é um modo indireto de entrar na guerra. Não se fala, até agora, em envio de tropas porque isso significaria, parece, o início de uma Terceira Guerra Mundial, em que os tanques e aviões ora em ação seriam considerados obsoletos, se é que me entendem... O arsenal nuclear da Rússia é até maior do que o dos EUA, mas há no Ocidente outras potências nucleares. Essa é uma conta à beira do abismo porque, num enfrentamento total, nada restará no planeta que valha a pena. Sabe-se lá se será o extermínio da humanidade.

A exclusão do país do sistema internacional de compensações, se efetivada pra valer, pode ter efeitos devastadores para a economia mundial, inclusive para a brasileira, que importa fertilizantes da Rússia. Atenção! Não vamos confundir as burrices que diz Bolsonaro com os interesses do Brasil. O Itamaraty repudiou a invasão, mas se opôs a essas medidas. Querem saber? Fez o certo nesse particular. Até porque EUA e UE resolveram estimular a ação de hackers contra a Rússia, coalhada de ogivas nucleares, algumas de acionamento remoto. É de uma irresponsabilidade espantosa. Ontem, aliás, Bolsonaro chegou a dizer que tinha tido uma conversa de duas horas com Putin. Depois recuou. Estava mentindo, certo?

O arsenal nuclear dos países existe para não ser usado. Trata-se do mais poderoso instrumento de dissuasão a impor a prevalência da política sobre a guerra. No caso da Ucrânia — na verdade, do mundo pós-soviético —, vê-se que faltou um tanto de bom senso político ao lado que inequivocamente triunfou com o fim da URSS. Não por acaso, James Baker chegou a sugerir que a Otan tentasse ter a Rússia como sócia do clube. Antevia problemas. E houve um entendimento tácito de que a aliança não avançaria para o Leste europeu porque, claro!, a Rússia pareceria ser a inimiga a ser contida. E era.

E, no entanto, a Otan avançou. E com que apetite! Aceitou o ingresso de nada menos de 14 ex-repúblicas socialistas, incluindo três ex-soviéticas: Lituânia, Letônia e Estônia. E, como é regra em associações dessa natureza, o combinado é que os sócios se defendam com homens e armas. Imaginar que a Rússia aceitaria passivamente a migração da Ucrânia para a União Europeia e para a Otan corresponde a jogar no lixo alguns ditames do realismo político. Podendo impedir, países não aceitam forças hostis nas suas fronteiras.

REALISMO E DIREITO INTERNACIONAL
Mas o realismo também não pode ser a licença para o horror e para o vale-tudo. Existem as regras do direito internacional. E aqui, claro!, se pode indagar se as potências ocidentais, por intermédio da Otan, não as desrespeitaram muitas vezes, ainda que pretextando ações de caráter humanitário. A intervenção em Kosovo se deu ao arrepio de qualquer legalidade. A ação contra a Líbia foi muito além do que foi autorizado. A intervenção na Síria foi igualmente desastrada. É evidente que a invasão da Ucrânia não pode ser tolerada. Mas fechar os olhos para a expansão da Otan e para suas ações ilegais em período recente corresponde a se colocar como porta-voz de alguns senhores da guerra.

Putin tem de recuar, e a Ucrânia tem de recuperar a sua autonomia, mas também tem de se lembrar quem é, qual a sua história e onde está localizada, renunciando a provocações. Lembro aqui um artigo de Henry Kissinger — sim, ele — escrito em 2014 no Washington Post.

Depois de fazer considerações sobre os laços históricos entre Ucrânia e Rússia, afirmou:
"1: A Ucrânia deve ter o direito de escolher livremente suas associações econômicas e políticas, inclusive com a Europa;
2: a Ucrânia não deve aderir à OTAN, posição que assumi há sete anos, quando essa questão começou [a ser discutida];
3: a Ucrânia deve ser livre para criar qualquer governo compatível com a vontade expressa por seu povo. Os sábios líderes ucranianos optariam, então, por uma política de reconciliação entre as várias partes de seu país. Internacionalmente, devem seguir uma postura comparável à da Finlândia. Essa nação não deixa dúvidas sobre sua feroz independência e coopera com o Ocidente na maioria dos campos, mas evita cuidadosamente a hostilidade institucional em relação à Rússia
."

Viram? É a defesa do casamento entre o realismo e o respeito à ordem internacional. Lembro de novo que a arrogância da Otan é tal que fez um convite formal na semana passada para que justamente a Finlândia (além da Suécia) integrasse as suas fileiras — aquela mesma citada por Kissinger como exemplo a ser observado. Lembre-se que o país era território russo, independente há pouco mais de 100 anos e que lutou ao lado dos nazistas contra os soviéticos na Segunda Guerra.

Vamos ver no que vai dar a reunião. Zelensky não é mais um comediante, mas continua a ter mais sucesso como comunicador do que como presidente. Alardeou ontem que o ataque da Rússia é generalizado e devastador. E aí o seu próprio governo informa que as baixas civis seriam pouco mais de 400... Ora, ataque indiscriminado é o que os nazistas fizeram a Stalingrado (hoje Volvogrado) ou o que os aliados fizeram a Dresden, na Alemanha. Nos dois casos, a população civil virou alvo militar. Os mortos se contaram aos muitos milhares.

Se os números são os anunciados pelo governo da Ucrânia, é sinal de que os russos ainda buscam alvos militares e ataques de precisão a determinadas instalações. Não há a determinação do ataque indiscriminado. Ao menos até agora. Mas o comediante que antes gostava de fingir que era presidente agora representa o papel de herói da resistência.

Que as negociações prosperem. Não podemos ser reféns de um autocrata, de um bufão destrambelhado e dos desatinos da Otan, ora sob o comando de um líder que usa jogos da guerra como instrumento de propagada em eleições domésticas.