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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A celebração da morte e oito cadáveres de "não vítimas", de "não pessoas"

Mãe diante do corpo de Gabrielle Ferreira da Cunha, 41 anos. Sua filha foi atingida por um tiro dentro de casa, na entrada da Chatuba, ao lado da Vila Cruzeiro. A bala perdida costuma ser achada em corpos pretos e pobres - Eduardo Anizelli/Folhapress
Mãe diante do corpo de Gabrielle Ferreira da Cunha, 41 anos. Sua filha foi atingida por um tiro dentro de casa, na entrada da Chatuba, ao lado da Vila Cruzeiro. A bala perdida costuma ser achada em corpos pretos e pobres Imagem: Eduardo Anizelli/Folhapress

Colunista do UOL

25/05/2022 16h47

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E o espetáculo de celebração da morte e da incompetência continua. E não faltou, por óbvio, o apoio de Jair Bolsonaro ao massacre da Vila Cruzeiro, no Rio. Até agora, apareceram 25 corpos. Dados alguns testemunhos, a forma da ação e gravações que vieram e público, é possível que o futuro venha a revelar ossadas de vítimas largadas na mata. É a barbárie em estado puro servindo à campanha eleitoral.

Para a surpresa de ninguém, estão nas redes tuítes falsos atribuídos a Marcelo Freixo, pré-candidato do PSB ao governo do Estado, pregando o fim da PM. A máquina de desinformação e mentira funciona junto com a máquina de matar. E, se tudo isso lhes parece pouco, a Polícia do Rio agora diz não reconhecer a autoria de oito dos mortos.

Reportagem da Folha teve acesso a dois boletins de ocorrência que se referem a 18 das 25 vítimas. Um deles relata a entrada de oito pessoas já mortas, "socorridas por populares que não se identificaram na emergência". Esses casos foram registrados como homicídio. Vale dizer: essas pessoas teriam sido mortas sabe-se lá como, sabe-se lá por quem. Parece haver aí um esforço de diminuir a letalidade da operação desastrada. Um pouco de cadáveres pode dar votos. Um excesso deles talvez assuste algumas consciências — exceto os tarados de sempre que se excitam com o cheiro de sangue.

Relatório enviado pela Polícia Militar ao Ministério Público, informa a reportagem, narra até agora a circunstância em que se deram 10 mortes. Outras 15 — nada menos — seguem sem esclarecimento. Pelo visto, nada se dirá sobre oito delas. E daí? Inundam-se o noticiário e as redes com a ficha criminal de alguns e com fotos de fuzis apreendidos. Assim, o massacre parece não só necessário como um ato de justiça. São 181 mortos em um ano, todos na gestão Cláudio Castro, em 39 operações. Não sei se ele se orgulha dessa particular forma de produtividade.

"Guerra é Paz; Liberdade é Escravidão; Ignorância é Força". Eis o lema do "Partido", o ente único que governa "Oceania" no livro "1984", de George Orwell.

Rômulo Silva, superintendente da Polícia Rodoviária Federal -- corporação que participou da ação sob o pretexto de que se reprimia roubo de cargas, afirmou o seguinte, segundo registro de O Globo:
"A PRF reforça que as ações de segurança pública integradas [com a PM] visam diminuir a letalidade. O objetivo da operação é prender os líderes das facções, mas fez-se necessária força do Estado para conter ações".

Já o tenente-coronel Uirá do Nascimento Ferreira, do Bope, afirma que a operação — que começou às 4h desta terça — foi planejada durante meses. O objetivo seria impedir que os criminosos se deslocassem pela cidade.

Como é? Foram meses planejando a repressão a um deslocamento de criminosos planejado com iguais meses de antecedência? Com todas as vênias, nada faz sentido.

O tenente-coronel diz ainda:
"Era um monitoramento para que a prisão fosse feita fora da comunidade. Não foi possível devido ao ataque da facção. Foi uma ação emergencial que não tinha como objetivo cumprir mandados, apesar de muitos deles possuírem mandados em aberto".

O monitoramento a que ele se refere seria, então, a tal "ação de inteligência". Mas aí teria havido a reação inesperada. Convenham: as explicações são desencontradas, contraditórias, opostas às vezes.

Mais: bandidos organizados, armados até os dentes, encontram uma resposta que teria sido, então, proporcional e necessária das polícias, certo? E não há um só policial morto? Saúdo que assim seja, ou a tragédia seria ainda maior. Mas qualquer especialista em segurança sabe que a história é insustentável.

O ministro Edson Fachin, relator da ADPF que criou algumas restrições a operações policiais nas favelas buscando justamente reduzir a letalidade, encontrou-se ontem com Luciano de Oliveira Mattos de Souza, procurador de Justiça do Rio (MP-RJ).

Uma nota divulgada pelo gabinete do ministro informa:
"Ao procurador, o ministro demonstrou muita preocupação com a notícia de mais uma ação policial com índice tão alto de letalidade na data de ontem, mas informou que soube da pronta atuação do Ministério Público e que tem confiança de que a decisão do STF será cumprida, com a investigação de todas as circunstâncias da referida operação".

Bem, tudo indica que, de cara, já se sabe que nada menos de oito das 25 mortes nem estarão relacionadas à apuração do massacre. Essas "não pessoas" teriam sido mortas por assassinos desconhecidos.

E, claro!, há quem ache que suas respectivas vidas seguirão mais seguras com o fornecimento regular, pelas forças de segurança, de cadáveres pretos e pobres.

Dá-se justamente o contrário. Massacres assim são apenas a véspera de novos massacres. E de mais insegurança.