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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Marcianos de Musk à porta trazem a baba reacionária de Ives e Marco Aurélio

Ilustração do livro "Guerra dos Mundos", baseado na obra de H. G. Wells. Os seres de Musk vêm aí, com as armadas garantidas por Bolsonaro, em nome da "nossa liberdade" - Reprodução
Ilustração do livro 'Guerra dos Mundos', baseado na obra de H. G. Wells. Os seres de Musk vêm aí, com as armadas garantidas por Bolsonaro, em nome da "nossa liberdade" Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

20/05/2022 17h06Atualizada em 21/05/2022 23h34

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Jair Bolsonaro é Jair Bolsonaro. Enquanto recebe "o homem que colonizou Marte" (ao menos na imaginação do suposto colonizador...) — evidenciando, então, quão influente é nosso nativo —, faz óbvias pregações golpistas. Saúda o bilionário como "sopro de esperança" e garantidor "da nossa liberdade", mas ameaça o país com o rompimento da ordem. Espera contar com o apoio dos marcianos de Musk?

O que o multibilionário que anseia ser o primeiro trilionário quer com quem não se entende nem com a democracia? Multiplicar os seus bilhões, e não há mal nenhum nisso, desde que nós, por aqui, cultivemos o nosso jardim, como no "Cândido", de Voltaire, que nem Bolsonaro nem Musk sabem quem é. Ninguém precisa do livro para virar presidente ou bilionário. Mas serve à preservação da "nossa liberdade", estejam certos.

O encontro do presidente com Musk é uma jogada de marketing bem-sucedida nos seus limites, que rende muitas interações nas redes sociais. Vi um tantinho do que se diz. Não muito porque é preciso ter estômago e tempo a gastar com nada. Os convertidos estão em estado gozoso; os que se opõem vêm relação de subserviência, e boa parte dos brasileiros que votam está empenhada em ganhar algum feijão para cozinhar em fogões improvisados com gravetos porque não podem comprar gás. Enquanto os marcianos de Musk não chegam, têm de se virar. Pesquisa Ipespe divulgada nesta sexta indica que tudo está como há 15 dias: Lula venceria Bolsonaro no segundo turno por 53% a 34%. Está assim desde agosto de 2021. Quem sabe com a ajuda dos marcianos.

Em entrevista a um canal do Youtube, afirmou o golpista mais uma vez:
"Temos três ministros que infernizam não só o presidente, mas o Brasil: Fachin, Barroso e Alexandre de Moraes. Esse último é o mais ativo e se comporta como o líder de partido de esquerda e de oposição. Esse inquérito da fake news, primeiro que fake news não existe"... Pois é... Existe, e o próprio presidente foi um dos principais divulgadores de mentiras sobre as vacinas, por exemplo. Acredita nos marcianos de Musk, mas não nas formas conhecidas de combater o vírus.

Atacou também o presidente do Senado... E transformará em alvo qualquer um que não compartilhe de suas maluquices reacionárias. Hamilton Mourão, tentando puxar o saco do eleitorado bolsonarista do Rio Grande do Sul, disse haver certa "disruptiva" no país, empregando o adjetivo, no feminino, com o se substantivo fosse. A derivação imprópria — nome técnico desse procedimento — permite falar sem dizer nada. Como adjetivo, o falante se obriga a dar o nome da coisa ou pessoa que seria "disruptiva". Como substantivo, você diz apenas existir "certa disruptiva". Combina com os marcianos de Musk...

OS "JURISTAS DO GOLPE"
Só não cometam o equívoco de pensar que não apareceriam no Brasil feiticeiros para tentar justificar traquinagens... diruptivas. Ontem mesmo realizou-se em São Paulo um suposto debate elevado que se tornou mero conluio golpista.

O evento, de saída, tinha problemas com as preposições e, por força dessa falha estrutural, acabou num déficit de ideias. Refiro-me ao "Fórum Segurança Jurídica", promovido um certo "Instituto Unidos Brasil". Por que o fórum não é "de" segurança jurídica e por que os unidos não são "pelo" Brasil? Bem, isso eu não sei. Preposições conectam palavras. Quando soltas, assim, podem traduzir também uma frouxidão de conteúdo — inclusive de conteúdo moral. E aí acaba em "certa disruptiva"...

As estrelas do evento foram os advogados Ives Gandra Martins e Marco Aurélio Mello. Convém, no caso do primeiro, parafraseando Eça de Queirós, reconhecer que o véu diáfano da fantasia do "professor e do jurista" vem cobrindo há muito tempo a nudez forte da verdade: o discurso golpista. O outro, que já tinha certo pendor para se comportar como ombudsman da Corte quando lá estava, vem se dedicando a atacar ex-parceiros de tribunal com diatribes verbais nem sempre muito claras no conteúdo — o que também não é novo —, invariavelmente incisivas na deselegância, embora sem alvo. Vira apenas o gosto da ofensa. E não tem tido receio de dançar com o ridículo.

Ives Gandra Martins revestiu a retórica golpista com suposta argumentação jurídica:
1 - O STF teria se transformado, disse, num partido de oposição.
A afirmação é ridícula de vários modos. E ignorante também. Não fosse a ação do tribunal, o governo não teria nem conseguido elaborar o arcabouço jurídico para criar o "orçamento de guerra" em tempos de Covid. Ademais, tanto governistas como oposicionistas recorrem excessivamente à Corte a meu ver. E não têm encontrado guarida quando se trata de mera judicialização da política.

2 - Martins, notório por sustentar que o Artigo 142 da Carta dá aos militares a palavra final sobre eventuais impasses entre os Poderes — o que é uma aberração mesmo para um reacionário — disse ter o sonho de o Supremo voltar à condição anterior a 2002. Sim, esse é o ano da eleição de Lula. Em 2018, negou-se ao petista um habeas corpus preventivo, absolutamente constitucional, por 6 a 5. Cinco dos seis votos eram de ministros indicados pelos governos do PT. Três dos cinco vinham de governos não petistas. Quem se jacta de ter "20% do tribunal" (Nunes Marques e André Mendonça) é Bolsonaro.

3 - Martins disse outra coisa espetacular: "Se nós não tivéssemos o resgate da candidatura do presidente Lula, talvez nós tivéssemos uma terceira via viável". É impressionante que alguém que fez carreira como professor de direito diga essa bobagem, ignorando o mérito da decisão. De resto, não fosse a vitória de outros times, o meu Corinthians seria sempre campeão, o que me pareceria absolutamente justo.

Não tem pudor de afirmar:
"Independente das razões que levaram o Supremo a tomar essa posição, mas houve um impacto direto [na política], e ao mesmo tempo uma sensação para o povo que não entende direito, de como é que o Supremo quatro anos depois descobre que o juiz era incompetente?"

Se as razões não têm importância, então se poderia manter uma condenação ainda que injusta ou ilegal, certo? Em nome da conveniência. Eis o jurista! Quanto ao povo... Lula seria eleito presidente com 54% dos votos hoje. O Moro candidato desistiu quando estava com 7%...

Em seguida, Ives falou uma patacoada:
"Agora, os senhores que são empresários sabem disso, um dos problemas que o Brasil está tendo para entrar na OCDE, é que a OCDE parte do princípio que nós não queremos mais combater a corrupção".

Foi aplaudido por outros mais ignorantes do que ele. A política ambiental do governo que ele apoia, por exemplo, tem um peso muito maior nas restrições.

MARCO AURÉLIO
A Marco Aurélio, faltam as "reflexões" adequadas de seu homônimo mais famoso.

Atacou o inquérito das "fake news", que tem servido de núcleo de resistência à escalda golpista, não sem emendar que mantém esperança na terceira via. Lembram-se, né? Faltava a preposição que daria sentido ao nome do seminário e ao tal grupo de empresários.

Afirmou o ex-ministro:
"Se mostrou um inquérito que foi instaurado pela própria vítima, o Supremo, quando nós sabemos que inquérito é instaurado pela autoridade policial e não pela vítima em si".

Ignora artigo do Regimento Interno do Supremo e votação validando a investigação: 10 a 1. Sim, ele foi voto contrário. Mas estava nos 11 a zero que mantiveram Daniel Silveira na cadeia, justamente no âmbito do inquérito que ele ataca — chamado, no seminário golpista, de "inquérito do fim do mundo". A procuradora Thamea Danelon, lava-jatista e parceira habitual de militantes bolsonaristas nas redes, estava lá.

Nabil Sahyon, da tal entidade sem preposição, que preside também a Associação de Lojistas de Shopping Centers (Alshop), pediu que que aquilo que se dizia ali — e eram ataques ao Supremo, em consonância com o discurso golpista do mandatário — se espalhasse pelo Brasil.

Um lixo.

MAS...
Mas fiquem tranquilos, como em todas as distopias, sem exceção, teremos uma sociedade hipertecnológica, aparelhada por Musk, mas conduzida politicamente por reacionários ensandecidos. As mulheres, especialmente as comissárias de bordo -- não é, bilionário-chefe?? -- podem ir se preparando para os centros de reprodução, uma versão, assim, verde-amarela de "The Handmaid's Tale", com o Deus de doutor Ives no coração.

A propósito: aos dois "juristas" da patuscada golpista e a seus esbirros, as palavras do jovem poeta Antero de Quental a um outro já avançado em anos, que havia feito uma crítica tola à geração de poetas que ele, o jovem, representava:
"Levanto-me quando os cabelos brancos de v. ex.ª passam diante de mim. Mas o travesso cérebro que está debaixo e as garridas e pequeninas cousas, que saem dele, confesso não me merecerem nem admiração nem respeito, nem ainda estima. A futilidade num velho desgosta-me tanto como a gravidade numa criança. V. ex.ª precisa menos cinquenta anos de idade, ou então mais cinquenta de reflexão."

Marco Aurélio e Ives Gandra são mais velhos do que era Castilho, o alvo da esculhambação. E eu não sou o jovem que era Quental naquele 1865, Mas procuro não somar às agruras sempre crescentes da idade — e vale para todos — o fel do reacionarismo, da intolerância, da truculência. E da futilidade.

Ops! Tocaram a campainha. Serão os marcianos de Musk?