Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
INFÂMIA PLANETÁRIA: Governo trata desaparecidos com modorra burocrática
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Ainda que o jornalista Dom Phillips e o indigenista Bruno Araújo Pereira sejam encontrados em segurança — e, infelizmente, poucos ainda acreditam nisso —, Jair Bolsonaro e seu governo consolidam o desastre reputacional nas áreas do meio ambiente, da proteção aos povos indígenas e dos direitos humanos. E isso, é evidente, contamina também a reputação do país. A despeito dos supostos esforços múltiplos para encontrar Phillips e Pereira, é perceptível que não se dá tanta bola assim.
Em nota, a Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari) -- para a qual Pereira trabalha --, o Opi (Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato) e a Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) afirmam:
"As informações acerca do cenário das buscas revelam a omissão dos órgãos federais de proteção e segurança, assim como das Forças Armadas (...).Ressaltamos que não foi constituída uma força-tarefa para as operações de busca."
Ai alguém poderia dizer:
"Ah, é sempre assim; essas ONGs sempre reclamam".
Dizer o quê? Lembremo-nos da nota absurda emitida na segunda pelo Comando Militar da Amazônia. Dizia o seguinte, quando o alerta do desaparecimento já tinha 30 horas:
"Em resposta a demanda sobre o caso do desaparecimento de um indigenista e um jornalista inglês na região amazônica, o Comando Militar da Amazônia (CMA) está em condições de cumprir missão humanitária de busca e salvamento, como tem feito ao longo de sua história, contudo as ações serão iniciadas mediante acionamento por parte do Escalão Superior. Agradecemos a confiança depositada nas Forças Armadas".
Como se vê, Pereira vira "um indigenista", e Phillips, "um jornalista inglês". Omitir o nome, em casos assim, corresponde a minimizar a importância da ocorrência. Tal minimização se dá também quando o Comando faz de si mesmo o motivo do comunicado: "Como tem feito ao longo de sua história". Trata-se de autocongratulação, não de reconhecimento de um problema.
De resto, o Comando Militar da Amazônia, em razão das peculiaridades da região, tem poder imediato de intervenção, sem precisar ser acionado pelo "escalão superior". A conclusão do texto, agradecendo a confiança, desloca, uma vez mais, o objeto da informação para o próprio comando, ignorando Pereira e Phillips.
Não é preciso ser um gênio da interpretação para perceber um subtexto de hostilidade. São os mesmos miasmas que emanam da fala de Bolsonaro sobre o caso. Como é mesmo?
"Realmente duas pessoas apenas em um barco, em uma região daquela, completamente selvagem, é uma aventura que não é recomendável que se faça. Tudo pode acontecer. Pode ser um acidente, pode ser que tenham sido executados. A gente espera e pede a Deus que sejam encontrados brevemente. As Forças Armadas estão trabalhando com muito afinco na região."
Como se hábito, as vítimas sempre são as culpadas -- desde que os envolvidos não sejam seus amigos. A fala é irmã-gêmea do que disse na sexta sobre a tortura e o assassinato de Genivaldo de Jesus por agentes da Polícia Rodoviária Federal:
"Não é a primeira vez que morre alguém com gás lacrimogêneo no Brasil. Se pesquisar um pouquinho, até nas Forças Armadas já morreu gente. [...] Eles queriam matar? Eu acho que não. Lamento. Erraram? Erraram. A Justiça vai decidir. Acontece, lamentavelmente".
Esse é o presidente que, no dia 29 de março de 2020, com 4.256 casos de Covid no país e 136 mortos, resolveu entrar para história; Afirmou:
"Essa é uma realidade, o vírus tá aí. Vamos ter que enfrentá-lo, mas enfrentar como homem, porra!, não como um moleque. Vamos enfrentar o vírus com a realidade. É a vida. Todos nós iremos morrer um dia".
É espantoso que ainda esteja na Presidência.
Depois de a nota ter gerado protestos de todo lado, o Exército publicou a seguinte mensagem na sua página oficial:
"Manaus (AM) - Nesta segunda-feira, dia 6 de junho, o Comando Militar da Amazônia foi acionado para apoiar as buscas pelo servidor da FUNAI, indigenista Bruno Araújo Pereira, e pelo jornalista britânico Dom Phillips, colaborador do The Guardian, que desapareceram no último domingo no Vale do Javari, interior do Amazonas, perto da fronteira com o Peru.
No mesmo dia, o Exército iniciou os esforços para encontrar os desaparecidos na região de Atalaia do Norte (AM). A 16º Brigada de Infantaria de Selva mobilizou equipes de especialistas em operações na selva, que estão empreendendo operações de buscas nos meios terrestre e fluvial.
O 4º Batalhão de Aviação do Exército também enviou, na tarde desta terça-feira, um helicóptero Jaguar H225M de Manaus para Tabatinga, em apoio ao deslocamento de agentes da Polícia Federal. A aeronave agrega mobilidade às equipes interagências na área de operações."
DOBRANDO A APOSTA
Dada a gravidade do episódio, é claro que o Ministério a Justiça deveria já ter nomeado um coordenador da força-tarefa para, quando menos, centralizar as informações. Mas Bolsonaro prefere dobrar a aposta no caos, como de hábito.
No chilique que teve ontem em solenidade no Palácio do Planalto, reagindo a cassação da liminar abjeta concedida por Nunes Marques (um jogo ensaiado), ele chegou a citar, sim, a questão indígena. Nestes termos:
"O que eu faço se aprovar o marco temporal? Tenho duas opções: entrego a chave para o ministro do Supremo ou digo 'Não vou cumprir'."
Ele se referia ao marco temporal para a demarcação de terras indígenas, que está em votação no Supremo.
Desde o primeiro dia de governo — na verdade, desde a campanha eleitoral —, o presidente demoniza as reservas e as trata como um entrave ao desenvolvimento do país.
É provável que ele e seu entorno nem mesmo se deem conta das consequências para o país caso se constate que o pior aconteceu.