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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Chega de papo-furado sobre Bolsonaro nos EUA. País tem de defender eleições

Colunista do UOL

10/06/2022 16h50

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Não me impressiono — e, por óbvio, acho que ninguém deveria se impressionar — com o "cascatol" diplomático sobre o encontro entre Jair Bolsonaro e Joe Biden, assegurando que tudo foi uma maravilha e que, ora vejam!, "deu química". A mistura heterogênea também é um fenômeno químico...

Atenho-me, reitero, ao sentido das palavras, não às interpretações interessadas ou às leituras das Polianas de sempre. Fato: o presidente repetiu para Biden que quer eleições "limpas" e "auditáveis" no Brasil, o que elas já são. Se ele diz o contrário — e está dizendo —, anuncia também em território estrangeiro as suas más intenções. Já não se trata mais de uma conversa golpista apenas para nativos.

Pode-se fazer de conta que não aconteceu, como o avestruz nunca fez — ou teria sido extinto antes de ser domesticado: enfiar a cabeça no buraco. O bicho assim procede para comer pedregulhos, o que lhe facilita a digestão, a exemplo de todas as aves. Só varia o tamanho. Melhor a gente encarar a pedra e moer o golpismo do cara para excretá-lo na sua forma final: o cocô da história. E esse não servirá nem para esterco.

Repito para os distraídos o que disse o presidente brasileiro:
"Este ano, temos eleições no Brasil. E nós queremos eleições limpas, confiáveis e auditáveis, para que não haja nenhuma dúvida após o pleito. Tenho certeza que ele será realizado neste espírito democrático. Cheguei pela democracia e tenho certeza de que, quando deixar o governo, também será de forma democrática".

A lógica elementar não pode ser confundida com indelicadeza ou maus bofes:
1: Bolsonaro diz querer eleições "limpas, confiáveis e auditáveis";
2: logo, Bolsonaro acha que as eleições, hoje, NÃO são "limpas, confiáveis e auditáveis";
3: se não são "limpas, confiáveis e auditáveis", então democráticas não são;
4: Bolsonaro diz que deixará o governo "de forma democrática" -- há, aí, implícito o advérbio "só": "só de forma democrática";
5: logo, ou as exigências de Bolsonaro são cumpridas, ou ele está anunciando que não pretende sair.

Declarações, de resto, têm de ser submetidas ao contexto, não é? Não podem ser tomadas isoladamente, a cada dia, como se vivêssemos no presente eterno.

Bolsonaro contou uma mentira na terça, em solenidade no Palácio: afirmou que as Forças Armadas apontaram "centenas" de fragilidades no sistema de votação. Não apontaram. Transformou o convite para que um representante das Forças Armadas participasse da Comissão de Transparência como se o TSE estivesse entregando aos militares o poder da última palavra. Isso nunca aconteceu. Aí reivindica a condição de "comandante supremo" das Três Forças para fazer, então, de tal representante a sua própria voz na comissão. Ele pretende ser, na verdade, o "fiscal supremo" de uma eleição na qual é candidato.

Li há pouco na Folha que o instituto escolhido pelo PL -- Voto Legal -- para auditar as eleições quer, antes, mudar algumas regras do TSE que são cláusulas pétreas, inclusive para blindar o sistema de invasões. Ali se informa:
"Um dos pedidos do Voto Legal é a permissão para usar computadores portáteis conectados à internet. Na regra atual, o trabalho deve ser feito "em ambiente controlado, sem acesso à internet".

Atentaram para o despropósito — ainda que o Voto Legal possa ser sério e ter a melhor das intenções —, a exigência que faz, diga-se, não foi apresentada nem pelo representante das Forças Armadas. Há ainda outras exigências que faria do Voto Legal não um instrumento de auditoria, mas ente subordinador do tribunal.

De resto, o TSE exige que a empresa a fazer a auditoria tenha "notória atuação em fiscalização e transparência da gestão pública". O "Voto Legal" foi aberto há menos de um ano.

Bolsonaro quer fazer exigências que não podem ser cumpridas para, então, ter motivos para melar o jogo. E não esconde isso de ninguém. Nem de Joe Biden. Se seria bem-sucedido em sua aventura e quanto tempo poderia durar a desordem que parece dedicado a provocar, bem, isso é imponderável. Certo não daria porque não há ambiente internacional para isso. Mas quanto pode custar?

É papo-furado essa história de que temos de parar de falar em golpe para não naturalizá-lo. Errado. É preciso reconhecer os indícios a apontar que o senhor presidente da República parece disposto a interromper o próprio processo eleitoral se as pesquisas insistirem em indicar que será derrotado. Um dos caminhos óbvios do mau perdedor é promover a baderna, já convocada por Flávio Bolsonaro, com todas as letras, para ensejar, quem sabe, a intervenção militar na garantia da "lei e da ordem" e dos "Poderes constitucionais", conforme Artigo 142 da Constituição. Tenta-se fabricar o mal para oferecer o remédio. Afinal, Bolsonaro poderá evocar, no mesmo artigo, a sua condição não de derrotado, mas de "comandante supremo" das Forças Armadas.

A tramoia é preguiçosa e truculentamente óbvia. E por que é preciso reconhecer o que está em curso? Para que as forças democráticas se organizem contra a violência irracionalista.

"Ah, mas as eleições estão longe... E se houver uma virada?"

A pergunta não faz sentido. Ou Bolsonaro só aceita eleição que ele vence?

Não adianta disfarçar: o presidente elevou o golpismo a um estágio novo, apesar da "química com Biden", e é preciso organizar a linha de defesa da democracia.