Ao defender "revolução" de 64, Salles prega golpe hoje; veja como e por quê
As cenas de estupidez, burrice e truculência explícitas a que se assistiu nesta terça na CPI do MST, que ouviu o general Gonçalves Dias, ex-chefe do Gabinete da Segurança Institucional, são evidências incontestáveis de que os inimigos da democracia e do Estado de direito continuam a ameaçar as instituições. Infelizmente, há certo viés de cobertura em parte da imprensa que dá piscadelas à delinquência sob o pretexto da pluralidade. Trata-se a pregação golpista como legítimo exercício de oposição.
A bufonaria foi meticulosamente preparada. Desde sempre — e afirmei isto aqui mais de uma vez —, sabia-se que a comissão para investigar a atuação dos sem-terra era só um palco para a baixa política. O movimento é usado como uma fantasmagoria para tentar, contra os fatos e as evidências, associar o governo Lula ao radicalismo e ao extremismo. Qual é, afinal, o fato determinado?
Não há, como se viu e como demonstrou Ricardo Salles (PL-SP), o relator. A linha de inquirição por ele adotada buscou caracterizar o depoente como um infiltrado comunista nas Forças Armadas. Dado que o deputado e seus pares sabiam de antemão a resposta que ouviriam — não havia como ser outra, vocês lerão —, armaram uma pantomima.
Enquanto Dias depunha, alguns parlamentares brandiam um pedaço de melancia. Éder Mauro (PL-PA), um dos maiores encrenqueiros do grupo, e Messias Donato (Republicanos-ES) aparecem com uma fatia da fruta, filmada também à frente de Carol de Toni (PL-SC). Melancia? A metáfora é empregada para designar supostos militares que, intimamente, seriam comunistas, daí o "verde por fora, mas vermelho por dentro". Tudo tinha sido combinado, claro!, com o caçador de comunistas...
NAUSEANTE
A atuação de Salles foi nauseante. Em tom persecutório -- chegou a chamar o interlocutor de "traidor" --, acusou-o de não ser um defensor da "revolução" de 64. Pior: a sequência de perguntas e a lógica adotada o tornam não só um apologista do golpe havido há 59 anos, mas um defensor ainda agora da virada de mesa.
Não faltam "clowns" à safra bolsonarista que chegou ao Congresso, especialmente à Câmara. Mas uma estupidez dessa magnitude não é corriqueira. De toda sorte, tem lá sua utilidade: demonstra a que se presta essa CPI e qual seu objetivo. Não havendo efetivamente o que investigar — e não há; aguardem para ver —, os bolsonaristas a utilizam como plataforma para manter vivos o discurso do ódio, a ladainha anticomunista e o agrotrogloditismo, que é distinto do agronegócio.
A convocação do ex-chefe do GSI já é uma aberração. Qual a justificativa? Como a Abin é subordinada ao órgão e como cabe à agência monitorar movimentos que possam ameaçar o Estado, Salles houve por bem constranger o homem que ficou apenas 19 dias no cargo, 12 dos quais tragado pelo ataque às respectivas sedes dos Três Poderes. Questiono se a agência tem mesmo de se infiltrar no MST. É óbvio que não. Mas indago: ainda que fizesse sentido acompanhar o movimento e ainda que o general dispusesse de alguma informação sigilosa, ele a passaria adiante ali? É uma sandice.
Ocorre que o falastrão reaça não queria investigar nada. Seu objetivo era denunciar a suposta conspiração, de que os sem-terra fariam parte, o que tornaria o Brasil de 2023 — este em que Lula reserva, só para o agronegócio, R$ 364,22 bilhões no âmbito do Plano Safra — semelhante àquele de 1964, quando, é bom notar, também não existia complô nenhum, embora houvesse organizações radicais de esquerda. Alguém viu os "conspiradores comunistas" resistindo nas ruas à quartelada?
Estava ali a cloaca da extrema-direita brasileira. Ela nada tinha a dizer sobre a PEC da Transição. Nada tinha a dizer sobre o arcabouço fiscal. Nada tinha a dizer sobre reforma tributária. Não tem projeto, não tem alternativas, não tem discurso. Então precisa investir no berreiro paranoico.
Mais: como Dias é um dos alvos preferenciais dos antediluvianos da CPMI do 8 de Janeiro — a outra comissão em que os pterodáctilos também dão rasantes —, o candidato a Joseph McCarthy estava prestando um serviço a seus colegas de extrema-direita, que não conseguem dar as cartas por lá. Na do MST, o "passa-a-boiada" e sua tropa promovem a bagunça que lhes der na telha. Vamos ver.
O GOLPE DE 1964
O relator, então, deu início à "Operação Caça-Melancia". Perguntou:
"O senhor destacou aqui, entre outros aspectos, o fato de o senhor ter ingressado na academia em 1969 para iniciar sua carreira, apenas cinco anos depois do advento de 31 de março de 64. E, obviamente, o senhor ainda um estudante, né?, um cadete lá da Academia Militar. Sabemos todos -- alguns com uma opinião, outros, outra --, mas sabemos todos o que se passou naquela altura. Queria a sua opinião: o senhor entende que o episódio de 64, que certamente impulsionou a sua decisão [de se tornar militar] foi algo positivo ou negativo da história do Brasil?"
E a "turma do fundão" lá, com a melancia na mão.
O leitor percebeu alguma relação de pertinência entre o objeto da CPI e a questão? Claro que não! O amostrado está se cacifando como um "líder" do extremismo num momento em que os reacionários andam por aí, perdidos.
O general respondeu:
"Deputado Ricardo Salles, eu não parei para raciocinar em cima disso [ao optar pela carreira]. O que me impulsionou, na minha carreira, logicamente, foi a minha vocação de querer ser soldado. E foi uma necessidade da minha família. Entrar nesta situação, se foi bom ou se foi ruim o movimento de 64, é polêmico. Deputado, se o senhor me respeitar, pela minha história, eu não gostaria de entrar nessa seara, muito obrigado."
O cara não respeita ninguém. E seu serviço não estava completo. Em sua corrida para ser uma das principais referência dos extremistas, ele queria mais:
"A pergunta tem pertinência, general, pelo fato de que o regime de 64, cuja corporação que o senhor integrou foi talvez a principal precursora ou motivadora daquele movimento, eu lhe pergunto se o senhor é daqueles que a classificam como revolução ou como golpe."
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Quero receberOuvem-se protestos de parlamentares progressistas, sempre combatidos pelo Santo Inquisidor dos fascistoides com grosseria, especialmente quando oriundos de mulheres. Ele estava com sede de sangue e insistiu:
"Vou simplificar a pergunta: o senhor entende que 64 foi algo positivo ou negativo para o Brasil dali por diante? A pergunta é simples".
Dias, mais uma vez, driblou a investida:
"Eu gostaria de me ater ao requerimento da minha convocação. Obrigado, deputado!"
O inalcançado pela decência cravou no militar a pecha de traidor:
"O Exército Brasileiro sempre se orgulhou da importante medida de 31 de março de 64 porque, se não fosse o 31 de março de 64, chegaríamos mais rapidamente aonde alguns querem chegar nesse momento. Me soa estranho, para não dizer traição aos seus colegas de caserna, o senhor não dizer que 64 foi uma boa medida".
Querem mais um pouco?
"A pergunta se justifica para que nós saibamos, se neste horizonte de tempo, de 31 de março de 64 até hoje, o senhor se situa ao lado daqueles que fizeram a revolução de 64 ou contra a revolução de 64. Porque essas ações que nós estamos vendo hoje do MST se aliam (sic) muito ao que se quis combater em 64. E os militares, seus colegas, até onde eu sei, unanimemente, é a primeira vez que um militar, sobretudo oficial-general de três estrelas, não defende a importante ação de 1964. Vou lhe perguntar novamente: o senhor é a favor ou contra a ação de 64"
Pacientemente, o inquirido respondeu:
"Deputado, isto não é objeto da investigação dessa comissão. A minha Força, o Exército Brasileiro, ele pauta a sua conduta em cima da hierarquia, em cima da disciplina e da cadeia de comando, amalgamada pelos valores éticos e morais, pensando num país maior e num país tenha equidade e espaço para todos. Obrigado, deputado!"
QUAL O SENTIDO?
Gonçalves Dias nada tinha a dizer sobre as ocupações do MST. Foi chamado a depor para ser submetido ao esculacho de gente como esse Salles, aquele que, na reunião presidencial de 22 de abril de 2020, afirmou que o governo deveria aproveitar que a imprensa só dava atenção à Covid para "ir passando a boiada" -- confessou que era o que fazia no Meio Ambiente.
Em recente reunião do PL para debater o voto do partido no caso da reforma tributária, mais uma vez esse patriota se manifestou sobre o seu jeito de fazer política. Atacou o governador Tarcísio de Freitas por ter defendido a aprovação do texto nos seguintes termos:
"É muito mais fácil, sem nenhum demérito ao trabalho que foi feito, fazer estrada, ponte, rodovia do que combater a esquerda. É nos ministérios ideológicos -- Meio Ambiente, Justiça, Educação, Cultura --, que a briga ideológica acontece. É ali que a gente põe em prática a roupa de ser de direita ou não".
Entenderam?
No Meio Ambiente, ele deixava "passar a boiada" porque, afinal, estava, assumidamente, praticando ideologia, não preservando florestas ou cuidando da economia sustentável.
Agora, ele é relator da CPI do MST. Como se viu nesta terça, não tem interesse em apurar coisa nenhuma nem está ali para isso. Até porque não há nada. Trata-se apenas de um palanque para que ele prove, afinal, como deve se comportar um direitista.
E ele provou. Defendeu o golpe de 1964 e disse enxergar, hoje, circunstâncias muito parecidas, em razão da atuação do MST, com aquelas que existiam há 59 anos e que serviram de pretexto para a quartelada. Logo, por lógica elementar, está pregando a necessidade de um outro em 2023.
O que os extremistas bolsonaristas pensam mesmo sobre arcabouço fiscal, reforma tributária, plano safra ou taxa de juros? Nada. Estão lá para nos salvar do comunismo, com fatias de melancia na mão.
São patéticos, grotescos, mas continuam perigosos e têm de ser combatidos. Porque, como se vê, são obviamente golpistas.
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