Reinaldo Azevedo

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Opinião

Parte da imprensa ignora o principal da fala de Haddad. E se saísse amanhã?

Escrevo na madrugada que se segue ao dia em que a eleição de Lula completa um ano. Representou o triunfo da democracia contra as tentações autoritárias de um bufão desastrado. Não obstante seu primitivismo, ele contaminou várias esferas do Estado brasileiro e também as Forças Armadas. Ao longo de quatro anos, espalhou ódio e discriminação, e o obscurantismo que simboliza foi, a seu modo, eficaz e fez deste Congresso o mais reacionário da República — dados os temas de cada época. Nunca foram tão numerosos os que se organizam para fazer o país andar para trás. Os fascistoides foram vencidos — por ora —, mas as sequelas são muitas, em várias áreas, como escancaram as reações hipócritas à entrevista do presidente, na sexta, e à de Fernando Haddad, ministro da Fazenda, nesta segunda.

De que modo essas coisas estão interligadas? Respondo nos parágrafos finais. Há muita coisa até chegar lá.

Apontei aqui no domingo o que me pareceu "hipocrisia" de certo colunismo, que reagiu à fala do chefe do Executivo como se ele tivesse rasgado o Livro Sagrado da Responsabilidade Fiscal ao afirmar que dificilmente se terá déficit zero no ano que vem. E por que apontei o coro dos hipócritas?

Ora, eles mesmos viviam a ironizar o homem forte da economia, antevendo que a pretensão dificilmente será realizada. Não vou repetir argumentos. Acrescento apenas outra contraposição a essa gente buliçosa: especulou-se que o chefe estaria a fritar o subordinado, sem que tenha ficado claro, fora de certas imaginações delirantes, o que ganharia com isso.

É claro que o titular da Fazenda estava obrigado a falar nesta segunda. E não criticarei os jornalistas porque insistiam em saber se ele desistira da meta. Tratava-se de uma arapuca. Pode-se inferir que, em certa medida, fora montada por seu próprio chefe, mas permaneceria armadilha ainda assim. Tivesse dito que, com efeito, dificilmente se obterá aquele resultado, levaria na testa o título inevitável, com eventuais variações na metáfora: "Haddad joga a toalha e desiste do déficit zero". Assegurasse, sem ambiguidades, que mantém o objetivo, ter-se-ia: "Haddad ignora Lula e diz que buscará déficit zero". Os mais ousados trocariam "ignora" por "desautoriza".

FALA PARA DENTRO E PARA FORA
Acontece que, ora cuidando das contas públicas, o autor de "O Terceiro Excluído", com o subtítulo "Contribuição para uma antropologia dialética" -- o livro poder ser tudo; fácil nunca! --, não nasceu ontem. Qualquer das manchetes era inconveniente, adicionando-se que ambas seriam mentirosas, dadas as premissas. Então ele fez a seguinte afirmação, muito mais eloquente do que estes tempos de "Diário da Candinha" podem alcançar. Leiam:

"Meu papel é buscar o equilíbrio fiscal, e eu farei isso enquanto estiver no cargo. Ponto. Sabe por quê? Não é por pressão no mercado financeiro; não é porque eu sou ortodoxo. É porque o Brasil, depois de 10 anos, precisa voltar a olhar para as contas públicas. Eu tenho amigo meu que me crítica. Fala: 'Pô, o Haddad tá virando...' Não! Eu não tou fazendo uma coisa em que eu não acredito. Aliás, eu não tenho esse perfil. Não tenho! Não sou talhado para fazer aquilo em que eu não acredito. Eu estou fazendo o que eu acredito. E estou dizendo. Eu escolhi, inclusive, o caminho mais difícil para fazer, que é a correção das injustiças do sistema tributário. Era mais fácil fazer o que se fazia no passado: inventa um imposto ou aumenta a alíquota. Não é o que nós estamos fazendo. Nós estamos repondo aquilo que foi perdido, aquilo que foi erodido".

Ah, minhas caras, meus caros... Para quem é íntimo das palavras, há tanta coisa a ler acima. Se ele aponta que o país, depois de 10 anos, precisa olhar de novo para as contas públicas, recue-se no tempo e se chega a 2013... Fica explícito que, a seu juízo, a falta de "olhar" remonta à própria gestão petista. E vejo aí uma resposta a possível fogo amigo.

Ele lembra por que está no governo, repisa sua tarefa e assevera que a cumprirá "enquanto estiver no cargo". Não sei se a circunstância temporal-condicional também soou alto aos ouvidos de vocês: o "enquanto estiver" contempla o seu contrário: "deixar de estar" se dele se exigir que algo distinto do seu "papel". Qual mesmo? O "equilíbrio fiscal". Na sequência, evoca amigos inconformados, que o tacham de "ortodoxo"; que o veem cedendo à "pressão do mercado financeiro" e "virando..." — leia-se: "mudando de ideia."

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Pondo a própria biografia no jogo, destaca na sequência: "Eu não tou fazendo uma coisa em que eu não acredito. Aliás, eu não tenho esse perfil. Não tenho! Não sou talhado para fazer aquilo em que eu não acredito".

Entendo que, aos críticos da direita, contrapôs um fato: não está criando imposto nem aumentando alíquotas; aos de esquerda, marcou o óbvio: quer "aquilo que foi perdido, aquilo que foi erodido".

Entendo ser o centro nervoso da entrevista. Dados esses tempos, chega a ser um privilégio haver no governo um titular da Fazenda disposto a recuperar a capacidade de arrecadação do Estado, apelando à perspectiva irrespondível de que essa é uma missão indeclinável dos Três Poderes, também e muito especialmente do Legislativo. Ou, sejamos explícitos a mais não poder, ele sai. É inequívoco que falou para fora. Mas também para dentro.

Exceção feita aos adoradores e aduladores do caos, quais dedos frenéticos dariam um "like" para uma eventual troca no comando da economia? Ricaços aqui e ali gostam de malhar o governo tributador, que "não corta gastos"... São, sem nenhuma vênia, contraditas desqualificadas porque esses gênios do próprio interesse são incapazes de dizer como é que se conciliariam decisões dessa natureza com o resultado das urnas.

Remeto-os ao texto que escrevi na madrugada de ontem sobre pesquisa Genial-Quaest: em questões econômicas relevantes, o eleitorado de Bolsonaro não pensa coisa muito distinta do de Lula — e o acento é marcadamente pró-social. As maiores divergências estão nos chamados "temas de costumes" — e, ainda assim, são menores do que a temperatura das redes sociais faz supor.

ENTREVISTA ABANDONADA?
Fazia ontem um bate-papo para o podcast "Reconversa" enquanto Haddad concedia a sua coletiva. Encerrado o meu compromisso, pego o celular: vários links remetiam a textos "informando" que ele havia "abandonado" a entrevista coletiva, "irritado". Lembrei de Felipão, em abril de 2013, caindo fora, desgostoso com as perguntas dos jornalistas depois de um empate da seleção brasileira com a do Chile em 2 a 2.

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Ocorre que não aconteceu. Instado mais uma vez a falar sobre a eventual mudança da meta de déficit, destacou que já tinha respondido quatro vezes a mesma questão e encerrou o encontro, sem aspereza. As imagens provam.

Acusar um suposto fim abrupto da conversa constrói a imagem de uma pessoa aturdida, atarantada, incapaz de responder aos desafios dados. Falso. "Ah, mas ele não respondeu se ainda quer déficit zero ou não..." Releiam a declaração. Ele foi muito além dessa questão rasa.

DE VOLTA AO COMEÇO
A cobertura torta é desdobramento da má vontade com o governo como um todo e com Lula em particular. A corrosão da democracia durante os anos Bolsonaro perverteu também alguns padrões de setores consideráveis da imprensa.

À medida que valentes buscaram normalizar o bolsonarismo como uma das expressões aceitáveis da democracia — ainda que não seja a mais atraente —, plasmou-se a má consciência de que só se é verdadeiramente independente quando um esforço honesto para corrigir distorções, ainda que venha a ser malsucedido (e isso não está dado), é tratado em pé de igualdade com as agressões mais pavorosas às instituições. Trata-se de um desastre intelectual, que alimenta o ciclo de desprestígio da política como única arena não sanguinolenta de resolução de conflitos.

Li há pouco um texto em que o presidente da República, em razão da opinião dada na sexta, recebe o tratamento de um usurpador; como se lhe faltasse, ao opinar sobre a economia, a legitimidade que faltava a seu antecessor para pregar golpe de estado — destacando-se, é certo!, que a ninguém é lícito fazê-lo sem que incorra num crime.

Ao se atribuir ao líder petista o papel de intruso, seu ministro da Fazenda só pode ser ou um pateta submetido a seus caprichos — "Haddad joga a toalha" — ou alguém que coloca o chefe no seu devido lugar: "Haddad ignora Lula..." Nem uma coisa nem outra fazem sentido porque há um erro de premissa.

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Lula e seu ministro estão a dizer, ainda que por meio de palavras distintas e até contrastantes, que o déficit zero não é um assunto privado ou de um só Poder. Tanto aos do "partido de dentro" como aos dos "partidos de fora", o ministro ainda avisou: não fará malabarismos nos quais não acredita nem abrirá mão de corrigir as distorções. Não "enquanto estiver no cargo". Entenderam?

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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