Reinaldo Azevedo

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Opinião

Plano para a indústria, apocalipse "duzmercáduz" e ideologia em vez do fato

Enquanto escrevo, a Bolsa sobe 1,1%, e o dólar cai 0,27%. Nesta segunda, dia do anúncio do programa Nova Indústria Brasil, cheguei a imaginar que já tinha começado o Apocalipse Segundo "Uzmercáduz". Não sei se notam, mas, quando contrariado, Uzmercáduz costuma competir com São João para ver quem consegue criar os cenários mais terrificantes sobre o futuro. Com a diferença de que, na perspectiva finalista do apóstolo, tem-se o caos que leva à salvação; no caso deste outro visionário — Uzmercáduz —, não. Ou se faz tudo o que ele determina e prediz, ou só restará desolação.

Não sabemos se a predição de São João vai mesmo acontecer. Há quem assegure que tudo já está em curso, embora muitos não liguem o nome à coisa, não é mesmo? Conversar com um apocalíptico é sempre uma experiência meio perturbadora porque ele garante ver o que outros não veem, incluindo o interlocutor. E isso vira a prova de que ele tem razão. Quando ao outro antecipador de cenários, aquele..., vocês sabem: errou tudo. Olhem para 2023: "Uzmercáduz" errou a previsão de crescimento, de inflação, de emprego, de arrecadação. Ainda bem que o governo não caiu na sua conversa. E, sim, muitos acreditaram e quebraram a cara. Os expertos e espertos que souberam ler a manipulação de expectativas, como é óbvio, se deram bem.

Bem, o dia de ontem acabou, chegou o de hoje, e o fim do mundo mais uma vez não veio. Vou dizer o que me incomodou na cobertura da imprensa, com raras exceções. Começo com uma indagação: onde estavam os economistas que veem virtudes no plano apresentado pelo governo? Eles não existem? Estamos condenados às análises da algaravia de "especialistas" do chamado "mercado financeiro" — ou que outro nome se resolva dar —, aqueles mesmos que passaram o ano de 2023 a vender uma tempestade de crises, que, por fim, não aconteceu? "Ah, mas vai acontecer..." Então tá. Falei há pouco sobre a experiência de conversar com um apocalíptico, né? Com a diferença de que há aqueles que são honestos em sua loucura e arcam, muitas vezes, com o preço de suas antevisões únicas. Estes outros não. Estão a fazer negócios. Eu sei, é do jogo. Mas me parece que a imprensa deve refletir com mais fidedignidade as divergências, em as havendo, que estão na sociedade.

Eu convido o leitor a procurar uma análise detida do programa apresentando pelo governo. Não há. A recusa praticamente unânime ao programa se deu com os olhos voltados para o passado:

"Ah, já vimos isso antes, e não dá certo!". Isso o quê?
"Governo volta à política dos campeões nacionais". Parece-me que está demonstrado que não. Mas que se ouça o contraditório ao menos.
"Percentual mínimo de compras nacionais" é uma aberração. Só o Brasil faz essa escolha?

Observem: não estou aqui a defender que essas críticas sejam banidas da imprensa. Ao contrário. Mas, em matéria de economia, o que há de errado com o contraditório? Até negacionistas da vacina encontram seu lugar de fala hoje em dia e são tratados com dignidade; até golpistas conseguem se manifestar. Não sobrou um miserável lugar para economistas que defendem a reindustrialização do país? Essa ideia é mesmo tão estúpida a ponto de virar um anátema?

Li análises indicando que o tal plano pode conduzir ao descontrole das contas públicas. Não entendi por qual caminho isso se daria. Outros falam que pode pôr em risco a trajetória da dívida pública. Também sem explicação. Como o BNDES, um banco de fomento, está no centro do financiamento do plano, parece-me que se ignorou a natureza do banco — que não vai tomar dinheiro do Tesouro para os empréstimos reembolsáveis.

Fiquei com a impressão de que saraivada crítica não passa, no fim das contas, de pura ideologia. Faço aqui uma sugestão a essa gente: que explique o que há de essencialmente diferente entre o financiamento da indústria e o Plano Safra. "Ah, mas o agro é virtuoso; a indústria não". Mas isso significa que devemos nos conformar em mandar a nossa indústria para o buraco? Ademais, parte do financiamento vai para aumentar o percentual de agroindústria no PIB agropecuário. Isso implica ganhar valor agregado, aumentar empregos e desenvolver tecnologia.

Tratou-se o plano para a indústria como se Lula tivesse decidido reinaugurar a indústria movida a lenha. Assim não dá. Vira um corredor polonês ideológico, não um debate.

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O Brasil resolveu fazer um plano de crédito para a indústria — e não para qualquer uma; as escolhas me parecem as corretas — de R$ 300 bilhões — meros US$ 60 bilhões para a 9ª economia do mundo, o que corresponde a 3,15% do US$ 1,9 trilhão que Biden meteu na economia americana. Só semicondutores e chips, foram US$ 280 bilhões, o que correspondente a quase R$ 1,4 trilhão. A União Europeia investiu outros US$ 2 trilhões; o Japão, US$ 1,5 trilhão. Vai ver os liberais deles são mais burros do que os nossos.

"Ah, mas governos petistas já se deram mal com essa política?" É mesmo? Em primeiro lugar, demonstrem que, então, os erros, se erros, são os mesmos. E não conseguirão. Em segundo lugar, mas não menos importante, sugiram um caminho que não seja abrir mão de ter uma indústria — e, pois, a autonomia tecnológica necessária. Não há.

E isso me obriga a concluir que a pancadaria, no fim das contas, nada tem de técnica. É ideológica mesmo. Virou só mais uma maneira de exercitar antipetismo e antilulismo. É um direito político não gostar nem de uma coisa nem de outra. Mas não é preciso condenar a indústria por isso, não é mesmo?

O caminho da preguiça nunca é bom. Vi a mesma coisa em relação à retomada da refinaria de Abreu e Lima. Exumaram-se os cadáveres da Lava Jato, como se as mesmas irregularidades reais e supostas estivessem sendo exercitadas de novo, e poucos perceberam que valentes vigilantes do dinheiro público estavam a pedir, na prática, que a refinaria fosse transformada em sucata.

Com a devida vênia, ou sem nenhuma, isso é berreiro ideológico, não é análise técnica. Certamente há uma maneira mais inteligente e menos danosa se ser antipetista e antilulista.

Vamos ver quando "Uzmercáduz" terá sua nova antevisão apocalíptica. E errada.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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