Reinaldo Azevedo

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Opinião

Modo de ser do golpe, um ano depois, é articular a impunidade dos golpistas

Pouco mais de um ano depois de um dos eventos mais graves da nossa história, os mesmos que deram suporte intelectual à barbárie mantêm a sua pauta: desestabilizar o governo e manietar o Supremo. Na atual fase, o modo de ser do golpe é articular a impunidade dos golpistas. Vamos ver.

No caso do imbróglio da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), há a investigação propriamente, e há o berreiro artificioso que pretende blindar Jair Bolsonaro e seus aliados de qualquer apuração. Qual é a tática, velha conhecida? Denunciar um complô, emprestando-lhe, se necessário, uma dimensão verdadeiramente bíblica, para depois anunciar aos sectários: "Eu bem que avisei; nossos inimigos estavam se preparando". Na quarta, um dia antes da operação, o "Mito" e profeta de si mesmo escreveu no Twitter:
"As próximas semanas poderão ser decisivas.
- Vivemos momentos difíceis, de muitas dores e incertezas.
- "Quando um ímpio não quer que você olhe para um lado da estrada, ele bota fogo no outro lado da mesma, pois assim ninguém saberá do mal maior que ele fez do lado que você não olhará."
- Deus, Pátria, Família e Liberdade.
- Jair Messias Bolsonaro".

Horário da postagem: 9h30. O homem mal havia acordado, mas seus radares sobrenaturais — e todos sabemos que inexistem radares sobrenaturais — já antecipavam uma tragédia. Eu cá fiquei com a impressão de que ele é muito bem relacionado ou com o divino ou com algum infiltrado na operação.

AS OUSADIAS
As informações sobre a operação deflagrada pela Polícia Federal -- que resultou em 21 mandados de busca e apreensão -- estão em todo canto. São públicos os pedidos feitos pela PF, o parecer da Procuradoria Geral da República e o despacho do ministro Alexandre de Moraes.

Os dados reunidos nesses documentos, a indicar que havia uma espécie de Abin clandestina operando dentro da Abin oficial, são muito eloquentes. Resulta do conjunto, para começo de conversa, uma constatação inequívoca: usou-se, de maneira ilegal, um software para monitorar autoridades, políticos e desafetos do então governo. Como consta dos autos, "o uso da ferramenta FIRST MILE substanciado nos 60.734 (sessenta mil, setecentos e trinta e quatro) registros identificados na tabela 'TARGET' abarca o período de 06/02/2019 até 27 /04/2021". Uso, insista-se, ilegal.

No lance mais estupefaciente, havia a pretensão de criar a falsa evidência de que dois ministros do STF — Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes — teriam vínculos com o PCC. Como se nota, a ambição do que cheira a uma organização criminosa não era pequena. A Abin tinha um chefe: justamente, Alexandre Ramagem, delegado da PF que estava, então, lotado na agência e é hoje deputado federal (PL-RJ). Algumas das pessoas implicadas com a ilegalidade eram suas subordinadas diretas. A urdidura criminosa trabalhava com "núcleos". Um deles, intitulado "EVENTO PORTARIA 157", cuidava da tramoia contra os magistrados.

Observem que não vou tentar me antecipar ao que vai acontecer. Asseguro, e isto posso ver, tendo como referência os documentos públicos, que o conjunto de circunstâncias é de extrema gravidade. Se tudo não passa de um monumental equívoco e de uma elocubração sem fundamento, os procedimentos vão dizer. Meu ponto aqui é outro.

BERREIRO E BLINDAGEM
Em política, coincidência é quase sempre o desconhecimento de relações de causa e efeito. Que curioso! Na quarta, véspera da operação e no mesmo dia em que Bolsonaro anunciou "dores e incertezas", além da ação dos "ímpios" incendiários, o senador Rogério Marinho (PL-RN) reuniu a nata do reacionarismo barra-pesada em Brasília para anunciar o que mesmo as almas pias entenderam como uma articulação para intimidar o Supremo.

Reproduzo de novo suas palavras (escrevi ontem a respeito):
"Vamos definir uma pauta institucional, no sentido de preservar e de fortalecer as prerrogativas do Parlamento brasileiro. E há uma evidente hipertrofia de um Poder sobre o Legislativo, em cima do Legislativo. Então nós vamos definir, em conjunto, aqui, pautas que unem a oposição, a situação, que dizem respeito à preservação das prerrogativas e de como o Parlamento deve funcionar nesse equilíbrio necessário entre os Poderes da República, entre o Legislativo, o Executivo e o próprio Judiciário, que deve ser inerte e deve ser árbitro das eventuais contendas que a sociedade apresenta, e não um propositor de ações, como está acontecendo agora como um padrão. Porque o que aconteceu em 2019 e que era uma excepcionalização, uma excepcionalidade, virou um padrão dentro do Supremo Tribunal Federal, onde dezenas de processos estão sendo abertos de ofício, e isso certamente desequilibra o processo democrático, inclusive da forma como eles estão sendo instituídos".

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Uma das pretensões desses patriotas, por exemplo, é impedir mandados de busca e apreensão no Congresso mesmo com autorização judicial competente -- no caso, do STF. Marinho depois foi conversar com Roberto Barroso, presidente da Casa, e o senador Hamilton Mourão (Republicados-RS), que o acompanhava, explicou a pauta:
"Hoje, junto com outros senadores, acompanhei o Senador Rogério Marinho (PL/RN), líder da Oposição no Senado Federal, em reunião com o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Luís Roberto Barroso. No encontro, falamos sobre o necessário equilíbrio e respeito entre os poderes, deixando clara a nossa posição em relação aos inquéritos e a necessidade de anistia."

Nesta quinta, depois da operação que colheu Ramagem, os propagandistas do apocalipse voltaram a botar a boca no trombone. Eu os convido, internautas, a ler as peças que embasam a operação: o pedido da PF, o parecer da PGR e o despacho de Moraes — que, no caso, encarna o STF. Diante dos indícios e evidências elencados, qual seria a alternativa de cada um desses entes? A prevaricação?

E olhem que PGR e STF (Moraes) foram, digamos, suaves. A PF pediu que Ramagem fosse afastado do seu mandato. Não é nada difícil defender a medida. É delegado da PF, é parlamentar e integra a Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência da Câmara dos Deputados. Tem, portanto, proximidade máxima com a matéria e andou apresentando requerimentos sobre o caso. Mas parece que se escolheu o caminho mais suave, ainda que Moraes não tenha descartado a possibilidade, a depender de eventos futuros.

A ALTERNATIVA ERA A GARANTIA DA IMPUNIDADE
PF, PGR e STF, com os dados reunidos, não dispunham de alternativa que não fosse a garantia prévia da impunidade, que é precisamente a luta a que hoje se dedicam Bolsonaro e sua turma. Notem: no caso do deputado Carlos Jordy (PL-RJ), pode-se dizer que essa turma já tinha consolidado uma tese estúpida e amoral: os ataques de 8 de janeiro nada têm a ver com tentativa de golpe, e o verdadeiro culpado pelo desastre é o governo. Essa indecência começou a ser veiculada já no dia seguinte à intentona bolsonarista. Mas e agora?

A resposta de Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado e do Congresso, a Valdemar Costa Neto, presidente do PL, que o chamou de "frouxo" por permitir que a PF executasse os mandados de busca e apreensão não foi nada boa. Afirmou o senador:
"Difícil manter algum tipo de diálogo com quem faz da política um exercício único para ampliar e obter ganhos com o fundo eleitoral e não é capaz de organizar minimamente a oposição para aprovar sequer a limitação de decisões monocráticas do STF. E ainda defende publicamente impeachment de ministro do Supremo para iludir seus adeptos, mas, nos bastidores, passa pano quando trata do tema."

Resta da fala o seguinte:
- se querem limitar o poder do STF, que limitem as decisões monocráticas, o que seria desastroso (e não entrarei nisso agora);
- essa conversa de impeachment de ministros do STF não seria para valer porque os que o criticam por não investir nessa possibilidade -- Pacheco tem o poder monocrático de pôr para tramitar pedidos dessa natureza -- afinam na hora "h", o que sugere que poderia fazê-lo se seus desafetos da hora realmente levassem a coisa a sério.

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Resposta errada. Bastaria a Pacheco dizer que, vindo a autorização do foro adequado — e é o Supremo —, o comando do Congresso nem ele nem o deputado Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, têm o que fazer.

CONCLUO
Voltemos ao começo. Pouco mais de um ano depois de um dos eventos mais graves da nossa história, os mesmos que deram suporte intelectual à barbárie mantêm a sua pauta: desestabilizar o governo -- daí que se comportem como "hooligans" parlamentares, não como deputados e senadores dispostos a analisar proposições para o país -- e manietar o Supremo. Vale dizer: a agressão à democracia continua, mas agora por outros meios. Pretendem, e é o que depreendo do papo-furado de Marinho e da súcia na quarta, articular um golpe parlamentar contra o tribunal.

"Mas existe algo, Reinaldo, que o Poder Legislativo possa votar, inclusive sobre as atribuições do Judiciário, que esteja, por princípio e definição, livre do exame do próprio Judiciário?" A resposta clara, cristalina, insofismável é "NÃO". Ainda que os juízes possam dizer "isso não é da nossa competência". É claro que eles sabem disso. Mas apostam todas as fichas num confronto entre Poderes, como sempre. É o que lhes resta fazer.

Hoje, o modo de ser do golpe é articular a impunidade dos golpistas. E isso não se consegue com o Supremo de pé. Por isso tentam arrastar a cúpula do Congresso para o pântano.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.