Reinaldo Azevedo

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Opinião

Toffoli, J&F, Odebrecht e lava-jatismo como herpes-zóster do moralismo oco

Há o risco de o lavajatismo, a despeito de ter provocado tanta desgraça, permanecer como uma doença do espírito. Ou, sei lá, ficar incubado, como o vírus da catapora, que remanesce depois como o pavoroso herpes-zóster. Não venham me dizer que este é um país em que sempre se quer comer os ricos. Nada disso. A imunidade de que gozavam até outro dia as offshores e os fundos exclusivos e o silêncio cúmplice com que se aceita a desoneração da folha de salários dos tais "13 setores", além de uma penca de outras facilidades para pançudos, isso tudo nos diz que, também em matéria de impostos, bom mesmo é ser rico. E quando não é bom? Adiante.

Quando, no entanto, o assunto é Lava Jato, decisões de escancarada obviedade, como as tomadas pelo ministro Dias Toffoli sobre os acordos de leniência da J&F e da Odebrecht, são recebidas, muito especialmente pela imprensa, como um grande escândalo. Para começo de conversa, note-se: Toffoli não anulou a multa de R$ 10 bilhões no primeiro caso e de R$ 8,512 bilhões no segundo. Em decisões liminares, que serão levadas à Segunda Turma do STF, apenas suspendeu o pagamento, atendendo a um pedido das empresas para eventual renegociação, depois do acesso pleno ao conteúdo da Operação Spoofing.

UM POUCO DA SPOOFING; DEPOIS VOLTO
Uma breve pausa para refrescar a memória. A Spoofing foi deflagrada no dia 23 de julho de 2019 pelo então ministro da Justiça, Sergio Moro. O objetivo era chegar aos autores do hackeamento de mensagens trocadas no Telegram por membros da Lava Jato, que evidenciaram negociações ilegais entre a força-tarefa e o próprio Moro quando titular da 13ª Vara Federal. Parte do conteúdo hackeado foi parar nas mãos do site "The Intercept Brasil" e se transformou em reportagens do TIP e de parceiros, incluindo este escriba. Explicitaram-se armações entre o magistrado e os procuradores que constituíam uma verdadeira República paralela no país. A série de revelações ganhou o nome de "Vaza Jato".

Moro e os buliçosos procuradores da Lava Jato gritaram: "hackeamento é crime!" E é mesmo. Mas foi impossível ignorar que ele trazia à luz agressões à ordem legal ainda mais graves, só que praticadas por agentes que integram o sistema de Justiça e de persecução penal. O Estado que pune os malfeitos não pode ser um malfeitor ainda mais virulento. De todo modo, o então valente ministro prometeu chegar aos autores e apreender tudo o que estivesse sob sua guarda. E foi nesse ponto que ele deu mais um tiro no pé. Saibam: os hackers haviam passado à imprensa só um tiquinho do que acumulavam. E já era coisa de arrepiar os cabelos. O próprio Moro se encarregou de obter o resto. Ele queria destruir não só os arquivos que resultaram na Vaza Jato como os da Spoofing. A Justiça não permitiu. Mais do que isso: franqueou às respectivas defesas de acusados acesso ao material.

Em síntese: a sanha de Moro para tentar abafar o escândalo da Vaza Jato — e para punir as pessoas envolvidas — o levou a ser o agente inicial da maior e mais formidável produção de provas contra a Lava Jato: justamente a Operação Spoofing. Vê-se, acho, pela trajetória que sempre foi um homem muito mais ambicioso do que propriamente inteligente.

DE VOLTA AO CENTRO
Falo aqui um pouco com os Senhores Editoriais Furiosos, que andaram se manifestando em vários veículos, inconformados com a decisão de Toffoli porque esta seria um estímulo à impunidade. Houve até quem lembrasse que a Transparência Internacional já havia rebaixado o país no ranking do combate à corrupção. Com a devida vênia, essa ONG, no Brasil, no que respeita à Lava Jato, era parte do problema, não da solução. A parceria com Deltan Dallagnol em pretendidos exotismos de alguns bilhões deveria levar essa entidade a pedir desculpas por seus desvios, não a posar de moralista dos costumes e ser dedo acusador. É uma vergonha.

O argumento mais forte que esses vetustos Senhores Editoriais Furiosos encontraram está no fato de os dirigentes das empresas que celebraram acordos de leniência terem confessado praticas ilegais. Pois é... Não que estes bravos queiram sempre comer os ricos. Ao contrário até. Mas, nesse caso, pode ter batido uma fome incontrolável. Dado tudo o que se sabe da Lava Jato, revelado pela Vaza Jato e pela própria Operação Spoofing, há ou não há ao menos a dúvida razoável de que houve uma contaminação dos acordos de leniência pelos de delação premiada? Afinal, aqueles que poderiam regular concessões e punições num caso — membros da Lava Jato e Moro — também atuavam no outro.

COMO EXPLICAR?
Por que as ilegalidades todas praticadas pela operação -- ou alguém nega que tenham ocorrido? --, evidenciadas pelas reportagens da Vaza Jato e pelo conteúdo da Spoofing, deveriam ser jogadas no lixo quando se trata dos acordos de leniência? Deve-se ignorar o fato de que agentes que atuaram ativamente para definir a multa a ser paga pelas empresas eram os mesmos que podiam mandar prender -- e condenar -- os empresários se a coisa não saísse a seu gosto? É esse o Ministério Público que queremos? É essa a Justiça de que precisamos?

"Ah, mas a existência de conluio é uma suposição..." Não é, não!!! Eu estou falando de provas. E também da falta delas. Nunca ninguém da Lava Jato, incluindo Moro (e juiz não deveria ser de operação nenhuma, nunca!), aceita meu desafio para dizer em quais páginas da sentença que condenou Lula estão as provas que ligam o tal tríplex de Guarujá aos contratos entre OAS e Petrobras. Inexistem. Em embargos de declaração, já evidenciei umas 300 vezes, ele próprio confessa sem querer que era mesmo juiz incompetente na causa. E o STF reconheceu, ademais, a sua suspeição. "O que isso tem a ver com os acordos de leniência?" Respondo. Construiu-se um edifício de falsas evidências de ilegalidade e de presunções de culpa que sequestraram a política e a imprensa e que ambicionavam reivindicar para Moro, Dallagnol e companhia o monopólio da moralidade. O ex-procurador, deputado cassado, milita, agora claramente, nas fileiras da extrema-direita e tenta encontrar uma vaguinha no bolsonarismo, que, prudente a seu modo, não confia muito dele. Moro, eleito senador, está prestes a ser cassado por desrespeito, desta feita, a leis eleitorais.

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Dada a evidência aberrante de que delação e leniência se misturaram num exercício arreganhado de chantagem, como explicar a reação furiosa à liminar de Toffoli, que suspendeu o pagamento? Quando menos, ele fez o que exige a prudência. Ou a Casa de Horrores da Lava Jato se lembrou de se comportar como normalista exemplar só nesse caso? "Ah, vamos transformar a multa em moradias do Minha Casa Minha Vida..." A coisa tem lá seu apelo. Mas se pode fazer isso também com os bilhões de desonerações, não é isso?

CAMINHANDO PARA O ENCERRAMENTO
Se os senhores vetustos se sentem confortáveis em condenar as liminares de Toffoli porque estão certos de que a Lava Jato operou em tudo com correção, independência e zelo técnico, eu realmente nada tenho a lhes recomendar a não ser, sei lá, algumas orações para que encontrem a libertação... Quem sabe?

Se admitem que, em certos casos, houve mesmo desvios, deveriam explicar por que, no caso dos acordos de leniência, apesar da comprovada contaminação com as delações, nada há nem mesmo a questionar, e fazê-lo implicaria a condescendência com a corrupção. Não pode ser por ódio aos ricos porque se dá de barato que não padecem desse mal.

Se é um caso de herpes-zóster, digamos, moral, e eis o vírus da catapora a atacar de novo, em manifestação que pode ser até mais grave, dizer o que? No caso da doença, ela mesma, já há vacina. No caso da metáfora — a recidiva do lavajatismo —, convém indagar se não há um tantinho de hipocrisia, não é?, que consiste no tributo que o vício presta à virtude. Se bem que, nesse caso, parece que estão tentando evocar as virtudes num altar escandalosamente vicioso.

Digam aí: por que a Lava Jato só acertou nos bilhões dos acordos de leniência, ainda que operasse, em uma das mãos, o valor da multa e, na outra, os anos de cadeia?

É confissão que se deva levar a sério?

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PS: Os que já tiveram catapora devem se informar sobre a vacina contra o herpes-zóster. "Existe vacina contra o lavajatismo, Reinaldo?" Existe. A lei.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.