Lira e Pacheco deveriam proclamar de vez a República da Treva Parlamentar
Lula está, entendo, sinceramente empenhado em reconstruir um Presidencialismo democrático, como já chegou a haver no país — hoje, o regime se encontra sob intenso ataque. Jair Bolsonaro segue sonhando com uma tirania que some primitivismos dos mais variados matizes. E os grão-vizires do Congresso se revelam encantados com a ideia de uma ditadura da treva parlamentar. Resta saber a quem se conferiria o papel do Viktor Orbán macunaímico.
O ato que marcou a volta dos congressistas ao trabalho mostrou-se um show de horrores. Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, ameaçou botar fogo no circo. Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado, segue empenhado em botar fogo no Supremo. Quer realizar o que os golpistas de 8 de janeiro de 2023 não conseguiram. Nunca tantas irresponsabilidades se estreitaram com tanta determinação num abraço insano.
Lira riscou ontem o chão com a faca. À mensagem de entendimento enviada por Lula na reabertura dos trabalhos do Legislativo, respondeu com uma declaração de guerra contra o governo e com ameaças nada implícitas. Vocês não precisam acreditar em mim, mas nas palavras do próprio:
"Errará grosseiramente qualquer um que aposte em uma suposta inércia desta Câmara dos Deputados neste ano de 2024 em razão sejam por causa (sic) das eleições municipais que se avizinham, seja ainda em razão de especulações sobre eleições para a próxima Mesa Diretora, a ocorrerem apenas no próximo ano. Errará ainda mais quem apostar na omissão desta casa que tanto serve e serviu ao Brasil em razão de uma suposta disputa política entre a Câmara dos Deputados e o Poder Executivo. Para esses que não acompanharam nosso ritmo, nosso ritmo de entregas e realizações, deixo aqui humildemente um importante recado: 'Não subestimem esta Mesa Diretora; não subestimem os membros do Parlamento e dessa Legislatura'".
Ao mesmo tempo em que classifica de "suposta" a "disputa" entre a Câmara e o Executivo, ele anuncia a sua disposição para o ataque. E, como se nota, ainda se refere à sucessão na Casa, como a dizer: "Não ousem interferir; o cargo é meu, e eu faço o meu sucessor, segundo as minhas regras."
A palavra "suposta" parece acenar ainda com um outro significado: "Não há disputa nenhuma. Mando eu. Esta não é uma relação entre iguais".
QUAIS ACORDOS?
Com a indignação de que só os homens que se consideram honrados são capazes, falou em cumprimento de acordo, sem dizer quais, sugerindo que os alvos de sua invectivas sabem do que está a falar. Vamos lê-lo:
"O que queremos para 24 é mais avanço e mais aprimoramento legislativo, pelo bem do Brasil. E, para isso, seguiremos firmes na prática da boa política, pressuposto mais do que necessário para o exercício da própria democracia. E a boa política, como sabemos, apoia-se num pilar essencial: o respeito aos acordos firmados e o compromisso com a palavra empenhada. E esse exemplo de boa política e de honradez com os compromissos assumidos, dados por esta Casa, que marcou o ano de 23 e permitiu tantos avanços, também será a tônica de 2024. E é por nos mantermos fiéis à boa política e ao cumprimento de todos os ajustes que firmamos que a exigimos como natural contrapartida o respeito às decisões e o fiel cumprimento aos acordos firmados com o Parlamento".
Sempre que se tonitruam assim palavras sobre honra, é preciso prestar atenção a quem está falando. Aprendi isso desde muito cedo -- nem barba direito ainda tinha, e olhem que ela me veio logo. Alguém que me instruiu a fazer a distinção entre as palavras e as coisas me convidou a ler o primeiro parágrafo do AI-5, que instituiu a ditadura absoluta no Brasil em 13 de dezembro de 1968. Lá está escrito:
"CONSIDERANDO que a Revolução Brasileira de 31 de março de 1964 teve, conforme decorre dos Atos com os quais se institucionalizou, fundamentos e propósitos que visavam a dar ao País um regime que, atendendo às exigências de um sistema jurídico e político, assegurasse autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo, na luta contra a corrupção, buscando, deste modo, '"os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direito e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa pátria'"...
Como se vê acima, o ato que formalizava um regime criminoso se instaurava em nome da "autêntica ordem democrática" e se referia ao golpe de quatro anos antes como "reconstrução do Brasil". Conheça as árvores por seus frutos. Se espinheiros prometem figos, figos não haverá; se ervas daninhas anunciam uvas, uvas não se verão.
SEM PARALELO NO MUNDO
Já que Lira faz uma óbvia declaração de guerra, ele deveria preencher seu discurso de homem honrado com exemplos das promessas que foram feitas e que não se cumpriram. Mas ele vai além na sua leitura solipsista da Constituição. Mandou ver:
"A Constituição garante ao Poder Legislativo o direito de discutir, modificar e emendar para somente aí aprovar a peça orçamentária oriunda do Poder Executivo. Não fomos eleitos, nenhum de nós, para sermos carimbadores, para carimbar. Não é isso o que o povo brasileiro espera de nós. Espera, isto sim, independência e somatório de esforços, sempre a favor do nosso país. O Orçamento da união pertence a todos e todas, e não apenas ao Executivo porque, se assim fosse, a Constituição não determinaria a necessária participação do Poder Legislativo em sua confecção e final aprovação. O Orçamento é de todos os brasileiros e brasileiras. Não é nem pode ser de autoria exclusiva do Poder Executivo e muito menos de uma burocracia técnica que, apesar do seu preparo, não discuto, não foi eleita para escolher as prioridades da nação e não gasta a sola do sapato percorrendo os pequenos municípios brasileiros, como nós, parlamentares, senadores e deputados".
Ah, o tom elevado dos heróis! Em todas as democracias do mundo, o Legislativo aprova a peça orçamentária. Mas só no Brasil os congressistas usurpam a competência do Poder Executivo na destinação dos recursos. Mesmo os regimes parlamentaristas diferenciam o exercício do mandato do ato de governar.
Sabem quanto resta ao Poder Executivo para custeio e investimentos, depois de excluídos gastos obrigatórios, pagamento de juros e despesas financeiras? Meros R$ 222 bilhões. Na Lei Orçamentária, o Congresso reservou para si, desse total, espantosos R$ 53 bilhões — 23,8%. Nada há no mundo nada nem parecido. Os EUA estão entre as democracias que mais poder concedem às casas congressuais nessa área: meros 2,4% do que sobra efetivamente ao Executivo. No semipresidencialismo português, 0,5%; no regime misto francês, apenas 0,1%; na Coreia do Sul, 0,3%.
Os bacanas, por aqui, definiram R$ 25 bilhões para Emendas Individuais (11,26% do disponível) e R$ 11,3 bilhões para as Emendas de Bancada (5,1%). São de execução obrigatória, o que, por si, já é uma piada. Não contentes, avançaram em mais R$ 16,7 bilhões (7,5%) na forma de Emendas de Comissão — em tese, não obrigatórias. Aí Lula aplicou um veto de meros R$ 5,6 bilhões. E ainda deixou claro: não é que queira negar a grana; pretende convencer os autores das emendas, claramente nominados, a atrelar os recursos a obras do PAC, que, ao menos, tem eixos estruturantes.
Nada disso! A programas de governo, Lira pretende opor a Teoria da Sola do Sapato. Afinal, não é mesmo?, gente como ele e seus aliados sabem quais escolas e quais municípios precisam de coisas como aqueles formidáveis "Kits Robótica"... A própria imprensa, com raras exceções, parece não se indignar tanto assim. Há até quem tenha caído na conversa de que, afinal, existem mesmo competências concorrentes na destinação do Orçamento.
Errado! Execução orçamentária é tarefa, como quer o nome, do Poder Executivo. A balcanização de recursos, por intermédio de emendas, alimenta os interesses paroquiais e resulta em desperdício e ineficiência, de que é testemunha o imenso cemitério de obras paradas no país. E, adicionalmente, alimenta esquemas criminosos e caixa dois de campanha. Toda essa pompa discursiva esconde uma máquina de torrar dinheiro público.
AGORA PACHECO
Pacheco, presidente do Senado, por sua vez, deu sequência a seus afagos na extrema-direita e fez mira no STF:
"Discutiremos temas muito relevantes, como decisões judiciais monocráticas, mandatos de ministros do Supremo Tribunal Federal e reestruturação de carreiras jurídicas, considerando as especificidades e a dedicação exclusiva inerentes ao Poder Judiciário".
Não ficou por aí:
"Mais do que nunca, se faz necessário o fortalecimento da autonomia parlamentar. Proteger os mandatos parlamentares é proteger as liberdades. Liberdade de consciência, liberdade religiosa, liberdade de imprensa. Proteger a tão necessária liberdade de expressão, que não se confunde com liberdade de agressão".
É na parte em que liberdade de expressão não se confunde com "liberdade de agressão" que está o problema. O que terá querido dizer com "proteger os mandatos"? Quem, de fato, os ameaça? Faz alguma referência velada aos mandados de busca e apreensão, acenando de novo aos extremistas? Mais: exceção feita aos ataques de que, com alguma frequência, são vítimas os adeptos de cultos de matriz africana, a que ameaça à liberdade religiosa ele se refere?
ENCERRO
Cada um em seu canteiro e ainda que com alvos distintos, Lira e Pacheco enfraquecem as instituições e vão semeando a desordem em nome da ordem.